Todos os indicadores econômicos mostram que o desaquecimento iniciado após o fracasso do Plano Cruzado é suficientemente forte para poder transformar-se rapidamente num processo recessivo. Os sinais emitidos pelo ministro da Fazenda acerca da necessidade de reduzir o crescimento econômico já vêm sendo por ele mesmo substituídos por declarações de que o governo estará alerta para impedir a queda nos níveis de produção de emprego. Neste contexto, é importante discutir o papel da habitação popular.
Sabe-se que o déficit habitacional brasileiro deve ter superado 13 milhões de unidades, e que a falta de moradia para a população de baixa renda torna-se um problema alarmante; sabe-se também que o Sistema Financeiro da Habitação está parado, não financiando novos projetos de construção residencial. O 'boom' da construção de imóveis para as classes mais abastadas, ocorrido no ano passado e que ameaça agora transformar-se em amarga decepção para compradores e incorporadores, absorveu grandes contingentes de mão-de-obra não-qualificada; agora, porém, estes trabalhadores deverão novamente engrossar a massa de desempregados, como vários indicadores já começam a detectar.
Nesta situação conjuntural é surpreendente que ainda não haja qualquer esforço visível para definir uma nova política habitacional. A extinção do BNH foi apenas o tiro de misericórdia num órgão agonizante; não motivou qualquer esforço de renovação e serviu apenas para inchar a Caixa Econômica Federal com a absorção dos ex-funcionários do BNH. Trata-se de um exemplo de uma reforma administrativa do setor público às avessas; mantiveram-se os funcionários e demais custos, ao mesmo tempo em que se suspendeu a prestação de serviços.
O Plano Cruzado teve como reflexo a necessidade de conter o crescimento da economia. Mas ao mesmo tempo é desejável a preservação da taxa de emprego, principalmente dos trabalhadores de baixa renda. O setor habitacional surge como uma alternativa natural para ser incentivado. Absorve grandes contingentes de mão de-obra, tem baixo coeficiente de importações, demonstra uma baixa relação capital/produto, e acima de tudo, atende a uma premente necessidade social.
Nos últimos meses a evolução das cadernetas de poupança tem sido extremamente favorável. Em abril, o saldo de depósitos atingiu quase setecentos bilhões de cruzados, sendo que nos primeiros quatro meses deste ano houve uma captação líquida (depósitos menos saques) de Cz$ 87 bilhões. Deste montante, os agentes financeiros recolheram ao Banco Central - que agora passa a ser órgão normativo do Sistema Financeiro da Habitação - cerca de Cz$ 50 bilhões entre recolhimentos compulsórios e voluntários. O que chama a atenção é o fato desses recursos não serem utilizados para a construção habitacional, mas sim como fontes de liquidez para as instituições financeiras, para aplicações não-habitacionais e, em sua maior parte, para lastrear as operações do Banco Central.
Até o final do mês de maio as captações líquidas das cadernetas de poupança deverão atingir Cz$ 100 bilhões. Se aplicadas na construção de moradias populares para o atendimento das famílias de baixa renda (até três salários mínimos de renda familiar) seriam suficientes para financiar cerca de um milhão de unidades, quase 25% do que o BNH produziu em toda sua vida. E nas atuais condições de financiamento, que aliás não são favoráveis ao mutuário de baixa renda -se reduziu o prazo para quinze anos e se aumentou os juros para 12% e o CES para 1,18-, tais operações exigiriam prestações de menos de um salário mínimo por mês.
No passado, a atuação do SFH foi desapontadora. Não cumpriu, nos últimos vinte anos, sua função primordial, qual seja o atendimento à demanda por habitações populares. Torna-se imprescindível, portanto, que a política habitacional no Brasil seja amplamente reformulada, aceitando-se algumas premissas básicas.
A primeira é que o governo deve objetivar o atendimento exclusivo da população de até três salários mínimos de renda. Como a capacidade de pagamento destas famílias é limitada, não há como evitar a concessão de subsídios explícitos, fugindo-se assim da expectativa de auto-sustentação financeira que vem caracterizando a atuação do SFH até o momento. Ao mesmo tempo, devido à escassez de recursos, há necessidade de atender-se com o mínimo essencial, o maior número possível de famílias carentes de habitação, limitando-se o valor dos financiamentos a não mais de 400 ou 500 OTNS por unidade.
A segunda premissa é a necessidade de separar as atividades desenvolvidas pelo governo das dos demais agentes financeiros do SFH. No setor público se consolidaria um órgão encarregado de planejar e implementar programas habitacionais "strictu sensu" somente para a faixa de interesse social; por outro lado, os agentes financeiros do SFH, passariam a desempenhar as mais variadas funções ligadas ao financiamento de atividades imobiliárias. A política habitacional pública passaria a ser executada pela administração direta, e não por um "banco" (BNH ou CEF), e os agentes financeiros do SFH passariam a atuar como autênticas instituições financeiras.
A aceitação dessas duas premissas introduzirá profundas transformações na política habitacional brasileira. A reformulação da política habitacional brasileira nas linhas, aqui propostas (1) atingiria dois objetivos de fundamental importância na atual conjuntura - reativaria um programa de enorme conteúdo social, e preservaria o emprego para a população de baixa renda sem pressionar, num primeiro impacto, o balanço de pagamentos. A extinção do BNH apenas reconheceu a falência da política habitacional brasileira. O que não se pode admitir, no entanto, é que o problema não seja objeto de reflexão e de urgente redefinição.
(1) Para maiores detalhes ver M.C.C. de Albuquerque, "Habitação Popular: Avaliação e Propostas de Reformulação do SFH", in Estudos Econômicos, jan/abril, 1986, ÚSP/SP.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, atual chefe do Departamento de Economia e diretor eleito da Fundação Getulio Vargas (SP), doutor pela Universidade de Harvard (EUA) consultor econômico desta Folha.