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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Agricultura e antiinflação

A complexidade das recentes manifestações inflacionárias em todo o mundo capitalista vem desafiando ostensivamente a perspectiva dos economistas, que, presos a paradigmas instantes da vida econômica cotidiana, têm diagnosticado como inflação de demanda, inflação de custos, inflação administrada e mesmo inflação psicológica.


Sem dúvida alguma, todas estas apreciações sobre as causas da inflação apresentam alguma validade em certos segmentos da economia, e uma política econômica seletiva, portanto, diferenciada, poderia produzir resultados satisfatórios no combate a este fenômeno. Não tem sido esta, no entanto, a posição adotada pelos formuladores da política econômica no Brasil, em cuja execução se acentua uma tendência a generalizações no diagnóstico e na formulação da política anti-inflacionária.


A inflação é diagnosticada como um mal que atinge uniformemente todos os segmentos e setores da economia e enfrentada com instrumentos de política econômica de largo espectro, como, por exemplo, o desaquecimento da demanda, tabelamentos generalizados, redução da taxa de juros, ameaças de imposição de pacotes, containers, etc. Recentemente, surgiu uma nova fórmula de contenção inflacionária. Defendida entusiasticamente pelo atual ministro da Agricultura, o setor agrícola passa a ter um importante papel nesta cruzada na medida em que consiga aumentar significativamente seus níveis de produção, principalmente de bens de consumo básicos da população.


Mas as questões propostas neste artigo, na realidade advertências, residem no seguinte: de que forma um aumento generalizado da produção agrícola poderá conter significativamente a pressão inflacionária? Não se estaria, outra vez, esperando demais de um único setor, neste caso a agricultura, incrementando indiscriminadamente seus níveis de produção sem uma análise mais detalhada de seus processos internos? Está a agricultura localizada e bem dimensionada dentro de uma estratégia ampla de combate à inflação? Existe um elenco de instrumentos de política econômica que atue seletivamente em diferentes setores e segmentos da economia? Este elenco reflete adequadamente a forma como os setores da economia geram pressões inflacionárias e são, por sua vez, suscetíveis aos efeitos dos diferentes instrumentos de política anti-inflacionária?


O que se espera da agricultura é que, com o aumento da produção, haja queda de seus preços, reduzindo-se desta forma a pressão inflacionária e "enchendo-se a panela do povo". O raciocínio é perfeito; qualquer aluno de teoria econômica elementar sabe que o setor agrícola está inserido dentro do chamado setor competitivo da economia e que um aumento da oferta acarretará uma redução de seus preços. Observe-se, no entanto, que a receita do agricultor é o resultado da multiplicação da quantidade vendida pelo preço. O aumento da produção tende, também, a reduzir o segundo fator da multiplicação, o preço. Daí a pergunta: QUEM PAGA A CONTA?


É lógico que, se o aumento percentual na quantidade vendida for maior que a redução percentual nos preços, a receita do agricultor se elevará. Qualquer calouro, no estudo de economia agrícola, sabe que os produtos agrícolas, em geral, e os produtos básicos de alimentação, em particular, se caracterizam por uma demanda inelástica em relação aos preços, o que significa dizer que a variação percentual na quantidade demandada é menor que a variação percentual em seus preços, o que acarreta sensível queda na receita do produtor agrícola.


Vem, então, a questão: que garantia terá o produtor de que o acréscimo da produção será absorvido sem grandes quedas nos preços? Se isso ocorrer, é certo o fracasso dessa política de combate à inflação. O agricultor desincentivado pelas quedas de preços, inevitavelmente reduzirá seus níveis de produção, e voltaremos, assim, ao ponto de partida de todo o processo. O agricultor, embora nesta altura dos acontecimentos já devesse estar habituado a isso, dificilmente concordará em continuar subsidiando os demais setores da economia.


Certamente, a curtíssimo prazo, a pressão inflacionária será reduzida, possibilitando aos interessados capitalizar politicamente sobre a situação. No entanto, a agricultura estaria, mais uma vez, pagando a conta. Poderia ser contra-argumentado que, se ocorresse o aumento da produção agrícola pari passu com o aumento da produtividade, através de uma política racional de crédito e de outros instrumentos aconselháveis, seria possível a manutenção ou, até mesmo, o acréscimo nas taxas de lucro dos produtores agrícolas, concomitantemente com a queda de sua receita total.


Mais uma vez, o raciocínio está perfeito. Acontece que isto só poderia ocorrer a longo prazo. Qualquer estudante de nível intermediário de economia agrícola sabe que os níveis de produção agrícola reagem com relativa presteza à presença de incentivos ao acréscimo da produção; sabe, ainda, que o mesmo não é válido para aumentos nos níveis de produtividade que dependem de fatores tais como infraestrutura de transporte e armazenagem, introdução de insumos modernos, pesquisa e extensão agropecuárias, etc., variáveis estas que se baseiam em políticas econômicas e tecnológicas de longo prazo.


O imediatismo da política atual fica patente quando se analisam as medidas do "pacote positivo", recentemente aprovado pelo Conselho Monetário Nacional. Com exceção da ampliação do prazo de financiamento para aquisição de matrizes e reprodutores bovinos, de 5 para 8 anos, as demais favorecem o aumento imediato da produção, principalmente com a criação de uma conta aberta no orçamento monetário para créditos de custeio agrícola. Por outro lado, linhas de crédito de investimentos essenciais para o aumento da produtividade agrícola brasileira encontram-se desativadas.


A indústria nacional de tratores, que, para atender aos apelos governamentais, tem hoje uma capacidade instalada para produzir 110 mil unidades por ano, não deverá colocar mais de 15 mil unidades no mercado. Alegam os industriais do setor que o Banco do Brasil não liberou qualquer recurso para aquisição de tratores em 1979 e que, no primeiro trimestre do ano, venderam 30% menos do que o total comercializado em igual período do ano passado. Nem mesmo o que é básico para produtividade em terras ácidas como as nossas, incentivou a operação da calagem através, por exemplo, do Procal, um dos bons esquemas elaborados entre nós.


Sem dúvida alguma, a agricultura pode e deve contribuir, como todos os demais setores, para a redução da taxa de inflação. Torna-se necessário o incremento de sua produção e redução de seus custos, inclusive e principalmente de comercialização, para se conseguir uma redução de preços. Por tudo isso, deverá ser visto pelos formuladores de nossa política econômica, com igual clareza, a necessidade de se incrementar a demanda ou capacidade de absorção dos produtos agropecuários.


Recentemente, tivemos o exemplo da produção leiteira no centro-sul que, incrementada em resposta a políticas de incentivo do governo, não teve sua produção totalmente absorvida, gerando condições para uma nova fase de escassez de leite "in natura". A própria sazonalidade da produção agrícola nos apresenta, periodicamente, situações como a por que passa a pecuária de leite em nosso país.


Uma forma de fortalecer rapidamente a demanda por produtos agrícolas seria uma política de redistribuição de renda, já que grande parte de nossa população se situa em classes de níveis de renda onde a elasticidade-renda da demanda é alta. Em outras palavras, nos segmentos de renda mais baixa, um acréscimo na renda geraria significativo aumento na demanda por produtos básicos de alimentação. No entanto, a viabilidade desta política, a curto prazo, é, para se dizer o mínimo, duvidosa. Para se evitar que os produtores agrícolas paguem a conta da luta anti-inflacionária e, para se evitar que a política de "encher a panela do povo" não se esvazie rapidamente, só resta uma alternativa de curto prazo, ou seja, a criação de um sistema de subsídios ao consumo, orientado para o incremento de consumo das classes de baixa renda, como aliás, já vem sendo sugerido por muitos, inclusive, a nível governamental.


Esse objetivo poderá ser alcançado por meio de "food stamps", distribuição direta no local de consumo, venda por intermédio de cadeias governamentais, ou outros meios e dependerá de estudos custo-eficácia, que o governo venha a fazer.


(Marcos Cintra C. de Albuquerque é professor de economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da FGV.)


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