Sem dúvida, um dos problemas atuais mais graves é o déficit habitacional brasileiro. Aquele que não possui, e, pior, que não vê perspectivas de vir a possuir sua casa própria, se transforma naturalmente num cidadão marginalizado e descrente nas instituições do País.
Quem observa o crescente favelamento no Brasil, a incidência já quase habitual de invasões de propriedades públicas e privadas e a degradação física e moral daquele que vive em sub-habitações, conclui que o direito a uma habitação digna tem sido negado a grande parte da população brasileira.
Vejamos alguns fatos que nos ajudam a compreender o que ocorre:
a) A Política Habitacional Brasileira não tem correspondido à prioridade que a habitação popular necessita. O Banco Nacional da Habitação foi criado em 1964, com o objetivo de solucionar o problema habitacional brasileiro nas camadas de baixa renda. No entanto, entre 1970 e 1975, tão-somente 38% das unidades habitacionais financiadas foram para o atendimento das camadas menos favorecidas. A partir de 1975 esta tendência foi invertida; mesmo assim, durante a década de 70 os financiamentos da Carteira de Operações de Natureza Social do BNH, destinados à baixa renda, totalizaram tão-somente 57% do total das unidades habitacionais financiadas. Para o ano de 1983 está projetada a aplicação de aproximadamente Cr$ 1,2 trilhões por parte do BNH. Desse total, a maior parcela (Cr$ 302 bilhões) ficará com programas de financiamento de obras públicas, ao passo que os programas habitacionais que atendem às camadas de renda inferior como Cohab's, Cooperativas Habitacionais e o Promorar ficarão com Cr$ 456 bilhões, ou seja, 38% do total. As Cohab's, atuando na faixa de 3 a 7 salários mínimos e as Cooperativas Habitacionais nas faixas de renda mais altas, têm atendido à demanda por habitação popular. No entanto, é na faixa de 0 a 3 salários mínimos que se concentra 77% do déficit habitacional brasileiro. Este segmento encontra-se lançado à sua própria sorte.
b) Falta, aos programas do Sistema Financeiro habitacional, a amplitude para atendimento às camadas carentes. Os programas habitacionais populares são, em sua virtual totalidade, orientados para a edificação de conjuntos residenciais, solução "tecnocrática" emuladora dos padrões de classe média. Tem-se ignorado soluções intermediárias, porém de grande alcance social, como programas de aquisição de lotes urbanizados, programas de apoio financeiro e técnico para a autoconstrução, programas de financiamento para aquisição e distribuição direta do material básico de construção, bem como programas de apoio e financiamento de "2 estágios", ou seja, aquisição de lote e posterior autoconstrução. Em artigos, publicados pela "Folha" em 8 de novembro de 1981, 6 de dezembro de 1981 e 26 de fevereiro de 1983, tivemos oportunidade de discorrer sobre a legislação elitizante e burocratizante que impede o desenvolvimento desta forma de atendimento à demanda por habitação das camadas populacionais carentes. Outrossim, pudemos demonstrar que o financiamento médio do Sistema Financeiro de Habitação situado em 2.500 UPC's, seria suficiente para o atendimento de número de famílias 6 vezes maior, no caso de redirecionado para o modelo de "2 estágios".
c) Existe uma contradição estrutural entre os objetivos sociais do BNH e a remuneração exigida pelos recursos do Sistema Financeiro Habitacional. O exame das linhas de financiamento do BNH revela a preocupação no atendimento a programas de interesse social, principalmente no âmbito da Carteira de Operações de Natureza Social e da Carteira de Erradicação da Sub-Habitação. Desafortunadamente, programas como o Ficam, Cicap e Proáreas, de alto conteúdo social, têm sido inoperantes. A efetivação do atendimento de programas de interesse social esbarra em dois problemas fundamentais, que compõem a estrutura funcional de nossa política habitacional. Em primeiro lugar os recursos são captados a custo elevado. Os recursos do FGTS, das cadernetas de poupança e da emissão de letras imobiliárias, exigem remuneração acima da capacidade de pagamento da população alvo dos programas habitacionais de interesse social. Assim sendo, são canalizados para aplicações que propiciem um nível de remuneração compatível com seus custos, ou seja, são canalizados para o financiamento de edificações para as camadas populacionais de renda mais elevada. Em segundo lugar, o BNH, sendo uma instituição de segunda linha, utiliza, em grande parte, o sistema financeiro privado para a obtenção da necessária capilaridade na consecução de seus objetivos. Mais uma vez este modelo de ação discrimina contra programas cujo valor unitário de financiamento seja mais baixo (embora possam atender a número significativamente maior de famílias). Isto ocorre em função dos custos operacionais — de administração, cobrança e fiscalização — mais elevados quando comparados a financiamentos de maior volume por unidade. A tendência de atender a financiamentos de maior valor unitário é reforçada pela remuneração mais elevada permitida para unidades habitacionais orientadas para as classes de renda mais alta.
d) A estrutura de capitalização de recursos do BNH aprofunda as recessões conjunturais. Sem dúvida alguma o setor de construção imobiliária é, individualmente, o maior observador da mão-de-obra urbana. No momento em que essas atividades perdem dinamismo, surgem importantes reflexos na taxa de emprego, no nível da renda interna e, consequentemente, na dimensão do mercado doméstico, gerando, ou aprofundando, tendências econômicas recessivas. Os recursos, e consequentemente as aplicações do BNH, advindos do FGTS são pró-cíclicos na medida em que aceleram eventuais tendências recessivas. Quedas na taxa de emprego reduzem os recolhimentos do FGTS, ao mesmo tempo em que aumentam os saques, limitando, via de consequência, a disponibilidade de recursos para o financiamento de programas habitacionais. O círculo vicioso se completa na medida em que a redução nos empréstimos do BNH aumenta a taxa de desemprego.
Em próximo artigo serão discutidas algumas propostas visando a solução dos problemas levantados.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas.