É sabido que o setor de produção de habitação atravessa profunda crise. Isto se deve não somente a grandes dificuldades conjunturais vividas pelo país, mas também à estrutura operacional do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), que, além de debilitada pela lenta captação líquida de recursos, não tem sido suficientemente flexível para possibilitar que o setor privado se desvincule da total dependência para com o BNH, que hoje é característica do modelo habitacional brasileiro. A estrutura operacional do setor é de tal forma dependente que não se constroem nem se vendem imóveis sem a participação do SFH. Isto em função não somente das deficiências do setor imobiliário, que, com exceção da atividade do parcelamento do solo, se amoldou a esta prejudicial sujeição para com os recursos do SFH, castrando a agilidade e a iniciativa do setor privado, mas também pela inflexibilidade dos órgãos governamentais, que têm impedido que os vínculos da dependência se dissolvam e que reapareçam ou sejam criados mecanismos adequados para enfrentar a crise e reativar o setor.
Ao invés, têm sido tomadas algumas medidas que são de caráter paliativo e que a longo prazo não favorecerão nem ao SFH nem ao setor imobiliário e nem à população carente de habitação. A transformação da Caderneta de Poupança num depósito à vista remunerado foi uma saída eficiente para os problemas imediatos do SFH. No entanto, não é recomendável que um sistema de aplicações a longo prazo, atingindo até 30 anos como é comum no setor habitacional, seja lastreado em recursos fluidos, de curto prazo, como os da nova Caderneta de Poupança. Daí não ser surpresa que se veiculem notícias de que o governo pretende alterar o perfil temporal do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além do aumento da alíquota para 10%, de forma a transformá-lo em fonte de recursos de longo prazo e assim contrabalançar as alterações nas cadernetas de poupança. Pretende-se suspender, ao menos parcialmente, as liberações do FGTS para aquisição de casa própria, admitindo-se os saques tão somente no caso de aposentadoria. Mais uma vez as regras do jogo poderão ser alteradas ao sabor das necessidades imediatas, prejudicando a credibilidade, tão essencial para um sistema financeiro de captação e aplicação a longo prazo.
O congelamento, mesmo parcial do FGTS não é desejável por duas razões. Em primeiro lugar, por uma questão de equidade. Os recursos do FGTS são depositados em nome dos trabalhadores em instituição dedicada à construção habitacional, e portanto devem poder ser utilizados pelo depositante com tal finalidade. O FGTS já veio substituir o instituto da indenização por tempo de serviço, e de certa forma ofereceu uma compensação no sentido de possibilitar o recebimento destes recursos durante a vigência do emprego. Retirar agora esta compensação seria injusto e insensato. Em segundo lugar, seria um fator de encarecimento relativo do produto habitação, quando o esforço governamental deveria ser no sentido de torná-lo mais acessível à população de baixa renda, que, embora de fato não sendo, deveria ser a população-alvo exclusiva do SFH.
Existem outras saídas mais consentâneas com a nossa realidade e que poderiam solucionar de forma mais justa os nossos problemas habitacionais, privilegiando a oferta de habitações populares. Antes de se elevar as alíquotas do FGTS e de se congelar seus depósitos, dever-se-ia estender este instituto ao trabalhador rural, o que incorporaria ao sistema, aproximadamente, um terço da população economicamente ativa do país. A indenização por tempo de serviço é hoje um instrumento ineficaz para a garantia do trabalhador rural, que se transforma cada vez mais acentuadamente em trabalhador volante, sem vínculo empregatício. A instituição do FGTS no campo, além de fortalecer o SFH, poderia também contribuir para a reversão do êxodo rural, para a eliminação do bóia-fria, e para a fixação do trabalhador no campo, desinchando os centros urbanos congestionados. Com esta medida, se tornariam desnecessários o enfraquecimento do SFH via aumento de liquidez das cadernetas de poupança e a medida compensatória desta última, o congelamento dos depósitos do FGTS.
Marcos Cintra Cavalcanti, professor de economia da Fundação Getulio Vargas e presidente da Associação Profissional das Empresas de Loteamentos do Estado de São Paulo (AELO).