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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

A desindexação dos salários

O uso da URP para reajustes salariais foi idealizado dentro de circunstâncias totalmente diferentes das atuais. Tratava-se de uma tentativa de inercializar a inflação mediante a correção de preços e salários por um coeficiente único, escolhido como a média da inflação dos três meses anteriores.


Cabe lembrar, contudo, que o início da aplicação deste critério estava ocorrendo após um congelamento de preços e dentro de um arcabouço de política econômica que, se acreditava na época, seria capaz de combater os principais focos inflacionários, principalmente pela contenção dos gastos públicos. Era dentro deste contexto, de inflação baixa e sob controle - portanto totalmente diferente do atual -, que os reajustes salariais pela URP não poderiam ser considerados fatores de aceleração da inflação; pelo contrário, contribuíram para estabilizá-la.


Infelizmente, as hipóteses de trabalho do ex-ministro Bresser Pereira não se concretizaram. Os gastos públicos não foram disciplinados, e as regras de reajustes salariais não foram respeitadas por ocasião das datas-base de alguns importantes setores do governo. O resultado foi a rota ascendente da inflação, que ameaça chegar à casa dos 20% mensais. Nestas circunstâncias, é possível acreditar que a atual política salarial não seja inflacionária?


É evidente que a aplicação da URP vem sendo acompanhada pela elevação da inflação. Mas este fato não pode ser atribuído apenas à URP, embora os efeitos dos reajustes salariais no crescimento do déficit público já estejam suficientemente demonstrados. Não se pode argumentar que a mera eliminação da atual indexação dos salários seja suficiente para estancar a evolução da taxa de aumento de preços. Isto só poderia ser conseguido mediante a adoção de uma estratégia antiinflacionária abrangente que incluísse, além de alterações na política salarial, um efetivo controle dos gastos públicos e uma política monetária compatível com a desejada estabilização inflacionária. Ademais, como também já ficou amplamente demonstrado pela experiência vivida ao longo de 1987, compressões dos salários reais são totalmente ineficazes, por si só, como terapia de combate à inflação. Além disso, é política iníqua, pois transfere apenas aos assalariados o ônus de terapias antiinflacionárias.


No caso, então, por que preconizar a extinção da URP?


Em primeiro lugar, porque mesmo que sua eliminação não seja capaz de conter a inflação, a continuidade de sua aplicação contribui para aumentá-la. Não se pode dizer que a indexação salarial pela URP acelere a inflação. Coeteris paribus, isto poderia acontecer. Mas como a indexação é imperfeita - e, portanto, causa perdas salariais quando a inflação é crescente -, a demanda interna é desaquecida, o que restringe a trajetória inflacionária.


Nota-se claramente que a inflação vem aumentando, porém a taxas decrescentes, e que na ausência de choques ela poderia se estabilizar. Mas como choques ocorrem, torna-se impossível prever sua trajetória. A continuação da URP, portanto, sanciona o crescimento da inflação, embora não possa ser acusada de ser uma de suas causas fundamentais.


Porém, a justificativa mais forte para a alteração da política salarial reside na necessidade de proteger os salários reais! Esta é a principal razão para a eliminação da URP. Se esta política eleva a inflação, sabe-se que as perdas dos assalariados serão mais acentuadas, pois os coeficientes de reajustes salariais ficarão cada vez mais distanciados da inflação corrente. Nota-se, portanto, que, não é uma tentativa de combater a inflação pelo arrocho salarial que embasa a proposta de eliminação da URP; é o inverso, ou seja, ela deve ser eliminada para proteger os assalariados e evitar que a estabilização da inflação ocorra à custa da redução dos salários reais. O recente exemplo do gatilho mostra que as maiores perdas ocorreram durante a mais forte indexação já utilizada no Brasil, antes da URP.


O controle da inflação não pode ser obtido exclusivamente com o sacrifício dos assalariados. A atual política, ao contrair os rendimentos dos trabalhadores, contribui para a concomitante elevação dos lucros. Não apenas os balanços das empresas e bancos mostram isso, mas também a resistência dos empresários à eliminação da URP é indicativa deste fenômeno. A indexação imperfeita dos salários e o crescimento da inflação são elevações das margens de lucro. E são mecanismos úteis e convenientes para justamente por ser uma indexação imperfeita que os trabalhadores saem perdendo, e os lucros aumentam. A única forma de evitar a continuidade desta situação é pela estabilização da inflação. Isso será trabalhadores precisam compreender que facilitado pela eliminação da URP, e os a melhor forma de dividir os custos da estabilização com os capitalistas, detentores de lucros e outras rendas, é por meio da desindexação dos rendimentos do trabalho.


Há que notar, contudo, que a suspensão da URP isoladamente será um engodo, inflação não continuariam atuantes, ace pois nada garantiria que outras causas da lerando a inflação mesmo que os salários não sejam indexados. Finalmente, cabe lembrar que a desindexação dos salários não significa dizer que devam ser congelados. A indexação obrigatória pela URP deve ser substituída pela livre negociação, ampla e irrestrita, de forma que cada setor atinja seu próprio equilíbrio na determinação dos níveis salariais.


 

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 41, é doutor pela Universidade de Harvard (EUA), diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e consultor econômico desta Folha.

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