Há três anos, a sociedade brasileira vem discutindo intensamente as mazelas do atual sistema tributário. Ineficiência, complexidade, altos custos, perda de potencial arrecadador, iniquidade, corrupção, marginalidade e informalidade econômica tornaram-se marcas registradas do absurdo sistema fiscal vigente no país. Sem falar nas profundas distorções que ele impõe àquela parcela da população que não tem como se defender dos brutais ataques fiscalistas deferidos pelo governo.
A proposta do imposto único é uma brisa de esperança. Colocou em campos distintos os que vivem dos impostos e não desejam mudar para preservar seus privilégios e seu ganha-pão e os que sobrevivem apesar deles.
Vários focos de oposição ao imposto único não conseguem esconder que estão em defesa de interesses corporativistas. Há exemplos na burocracia pública, nos escritórios de assessores, consultores, auditores fiscais e nos órgãos de classe do sistema bancário.
Mesmo assim, a proposta do imposto único sobre transações vem superando algumas das principais objeções levantadas contra ela.
As principais críticas foram: risco de remonetização da economia (uso de dinheiro vivo no lugar de cheques e de outros tipos de moeda escritural); verticalização do setor produtivo (as empresas passariam a produzir seus próprios insumos e a comercializar diretamente seus produtos); volta às práticas pré-históricas do escambo (troca de bens e de serviços sem a intermediação da moeda); transformação de cheques em quase-moeda (eles passariam a circular de mão em mão antes de serem depositados e compensados); regressividade (os pobres pagariam proporcionalmente mais do que os ricos); câmaras paralelas de compensação (as partes fariam pagamentos apenas pelos valores líquidos devidos entre si); enfraquecimento do princípio federativo e da autonomia dos entes federados (apenas a União teria poder de tributar e de distribuir); impossibilidade de desoneração das exportações e algumas outras.
Essas objeções, contudo, foram amplamente discutidas e percebeu-se que muitas delas eram improcedentes, outras, embora verdadeiras do ponto de vista conceitual, não resistiram a uma boa análise quantitativa custo-benefício, já que as alternativas de evasão implicam ganhos tributários de um lado, mas também custos. Ademais, eventuais distorções poderiam ser facilmente evitadas ou corrigidas mediante a montagem de uma estrutura institucional capaz de coibi-las.
Em outras palavras, logo percebeu-se que muitas das investidas contra o imposto único estavam calcadas em modelos conceituais puramente didáticos que economistas e administradores públicos comodamente não ousaram questionar ao serem transpostos para a realidade. Além disso, não se buscaram soluções para novos problemas, como na desoneração das exportações mediante o uso de rebates fiscais. Também não se evidenciou capacidade analítica para verificar que, sendo uma economia desmonetizada e tendo um sistema bancário informatizado e integrado, o Brasil possui condições historicamente inéditas para a implementação, com sucesso, do imposto único sobre transações.
É evidente que o IUT implica certa dose de ineficiência, como ocorre com todos os impostos. Introduz uma cunha entre custos e preços. Ademais, por ser um tributo cumulativo, sua incidência se diferencia a partir de "funções de produção" distintas dos diversos setores da economia.
Porém, partir dessa constatação elementar para a arrogante conclusão de que impostos em cascata implicam uma "simplicidade burra", como disse o ex-ministro Malson da Nóbrega em artigo publicado em 7 de fevereiro de 1993 na Folha, apenas confirma o desprezo ou desconhecimento das conclusões da teoria do "second best" e da evolução das pesquisas acerca da tributação ótima.
Os livros textos elementares de finanças públicas pressupõem, com fins puramente heurísticos, a livre concorrência, a inexistência de custos e a figura do "homus economicus" perfeitamente racional e inocente das práticas de sonegação. Como sabemos que essas condições não se traduzem em realidade, não há como concluir que necessariamente os impostos sobre valor agregado são mais eficientes ou neutros, como falsamente sugere o ex-ministro, do que os cumulativos.
Diz ainda o artigo que "a economia mundial dificilmente teria experimentado seu espetacular desenvolvimento pós-guerra, notadamente a partir dos anos 50, não fosse a solução" (os impostos sobre valor adicionado) "para o problema da neutralidade tributária".
Mas, note-se o anacronismo, os IVA apenas foram implementados na Europa no final dos anos 60 e início dos anos 70. A Alemanha tinha até 1969 um autêntico "turnover tax," como o nosso antigo IVC. Os Estados Unidos até hoje não implantaram impostos sobre valor agregado! Não existe a correlação sugerida pelo ex-ministro.
Há que se evitar afirmações peremptórias e, nesses casos, quase sempre equivocadas. Afinal, a pior ignorância é o meio-conhecimento.
Superados esses tigres de papel, a discussão volta-se para as estimativas de arrecadação desse novo tributo.
Existem estimativas de arrecadação para todos os gostos. Três delas, curiosamente discrepantes entre si, têm origem em dados fornecidos pela Febraban. Trata-se de avaliações acerca do volume de transações bancárias, que variam de US$ 500 bilhões a US$ 800 bilhões mensais.
Cumpre dizer que, mesmo na estimativa inferior - feitas as devidas correções nos dados e a correta aplicação do Imposto Único, se garantiria a arrecadação necessária. Em outras palavras, a receita tributária líquida para todos os níveis da administração pública seria a mesma que a atual, corroborando assim a tese da viabilidade do imposto único.
Avança-se, agora, em uma nova linha de confronto com os defensores do IUT. Embora possa até se admitir que o volume estático de transações tributáveis seja condizente com as expectativas de arrecadação dos defensores do novo imposto, lançam-se dúvidas quanto ao seu valor dinâmico.
Teme-se que os agentes econômicos reduzam significativamente suas movimentações bancárias, embora não caia o valor das operações econômicas. Por exemplo, as transferências de fundos de um mesmo agente econômico entre várias contas bancárias deixariam de existir, já que cada uma seria tributada. A administração de caixa das empresas visaria minimizar o volume de transferências interbancárias.
Em artigo publicado no dia 2 de dezembro passado, na Folha, Luis Nassif descreve, como exemplo, a estratégia de uma empresa para mostrar que a elasticidade das movimentações bancárias é elevada. O argumento mostra que uma empresa poderia reduzir em 75% o valor pago de imposto sobre transações, sem nenhum custo adicional.
A primeira e mais natural indagação reside em saber por que as empresas fazem seus recursos passearem pelos bancos, como alegam acontecer hoje. É evidente que deve haver alguma vantagem operacional nessas transferências de recursos entre filiais, matrizes e coligadas numa rede de incontáveis contas correntes espalhadas pelo sistema bancário.
Se elas podem ser evitadas sem custos para as empresas, como diz o artigo, cabe perguntar a razão de não serem eliminadas já, independentemente de qualquer alteração tributária. Se o passeio de recursos ocorre, então há uma vantagem privada nessas práticas. E nesse caso, ao abrirem mão delas, as empresas estariam incorrendo em custos de oportunidades positivos. No mínimo, deixariam de ganhar algo, o que, para economistas, é custo.
Além disso, o passeio de recursos pelos bancos tem custos sociais, embora possam não ser imputados diretamente às empresas. A sociedade ganharia, já que, ao se reduzir o volume de transferências bancárias, se estaria reduzindo o consumo de recursos escassos nessas estéreis transferências que em nada contribuem para a geração de bens ou de serviços. Assim, do ponto de vista social, o imposto único teria uma vantagem inequívoca.
Portanto, uma boa análise econômica indica que não procede a afirmação de que as operações bancárias poderão ser dispensadas sem custos para as empresas. E se há custos, também há um limite na tendência de enxugamento da base de incidência do IUT. Uma boa estimativa de queda no volume de transações bancárias estaria na faixa de 15% a 20%.
Outra linha de argumentação contrária ao imposto único aponta para as dificuldades que implicaria para a formação do Mercosul, já que o IUT seria um estorvo para a harmonização de políticas macroeconômicas entre os parceleros daquele projeto.
Essa é uma argumentação curiosa. Mesmo com sistemas tributários "compatíveis", a Comunidade Europeia, após décadas de esforços, ainda não logrou pleno sucesso na harmonização macroeconômica. Estão aí os desentendimentos na integração monetária para confirmar essa afirmação.
No caso do Mercosul, estamos ainda bastante atrasados. Basta observar as gritantes discrepâncias nas taxas de inflação entre os países integrantes do projeto. Assim, seria razoável deixar de aplicar uma necessária reforma tributária apenas por acreditar que ela dificultaria uma eventual e longínqua coordenação e harmonização macroeconômicas? Devemos condicionar nossa política econômica interna aos modelos fiscais dos outros países, ainda que menos adequados à estabilização e ao desenvolvimento interno da economia brasileira?
É certo que a harmonização fiscal seria bem-vinda. Mas não é condição necessária, muito menos suficiente, para o sucesso. "A coordenação de políticas macroeconômicas é desejável e poder-se-ia mesmo afirmar que seria uma situação ótima. Mas, como em várias tomadas internamente, na maior parte das vezes procura-se um 'second best' ou um 'third best', corre-se o risco de nada resolver se se procura decidir apenas em condições ótimas," escreve Olavo C.R. da Silva, em "A Coordenação de Políticas Econômicas no Mercado Comum do Sul, Mercosul," na "Revista de Economia Política," volume 12, número 4, edição de outubro/dezembro de 1992.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, Ph.D. em Economia pela Universidade de Harvard, é professor da FGV/SP, vereador e secretário do Planejamento do Município de São Paulo.