Artigo nesta Folha, publicado no dia 28 de março, sobre os Cepacs, revela destempero e incontinência acusatória de seu autor, o vereador Francisco Whitaker (PT-SP). A crítica não se dirige ao conteúdo específico do Cepac, mas a um infundado temor de que aquele instrumento poderá gerar focos de privilégios e corrupção. Mas, curiosamente, ao invés de propugnar pela função fiscalizadora do Legislativo municipal e sugerir formas para evitar a deturpação deste poderoso instrumento de financiamento público, o nobre edil prefere tentar matá-lo no nascedouro, em atitude de evidente retrocesso institucional.
Sabe-se que os gastos governamentais, afinal bancados por receitas tributárias recolhidas de toda a sociedade, acabam, ainda que em graus diferentes, por favorecer restritos segmentos privados. Por exemplo, quando são executadas obras urbanas, a valorização imobiliária é apropriada pelos donos dos terrenos lindeiros aos investimentos, embora estes tenham sido financiados pela coletividade como um todo. Sabe-se também que, hoje, as fontes tradicionais -impostos e empréstimos- de recursos para financiamento de investimentos públicos estão exauridas.
Como, então, conseguir recursos para prover infra-estrutura e serviços sociais demandados, crescentemente, pelas grandes cidades? Como absorver para a coletividade parte dos benefícios e lucros gerados pela valorização imobiliária emanada pelas mudanças de zoneamento?
Estas constatações me levaram a apresentar projeto de lei à Câmara Municipal, recentemente aprovado, criando os Certificados de Potencial Adicional de Construção -Cepacs, com vistas a securitizar os direitos de construir, estabelecer fonte alternativa de recursos para financiamento não-tributário dos gastos públicos e reverter para a população parte dos benefícios por eles produzidos.
Segundo o projeto, o direito de construir acima dos limites fixados pelo zoneamento atual só será admitido após o preenchimento de duas condições: 1) aprovação, por lei específica, da mudança de zoneamento de acordo com os ritos e formalidades hoje vigentes; e 2) a apresentação, pelo beneficiado, de Cepacs previamente adquiridos.Duas críticas têm sido ventiladas. Uma primeira afirma que o simples fato de adquirir e possuir um Cepac dará ao seu proprietário o direito de construir onde bem entender, ou seja, destruir o zoneamento da cidade. Outra apregoa que os Cepacs são inconstitucionais, pois, sendo títulos financeiros, não poderiam ser criados, nem emitidos, sem permissão do Banco Central.
Nada mais enganoso. Primeiro, porque possuir Cepacs significa, tão-somente, deter direitos adicionais de construção em áreas ou regiões específicas cujo zoneamento tenha sido alterado de antemão pela Câmara Municipal. Portanto, em nada interfere com a legislação atual de uso e ocupação do solo. Segundo, porque os Cepacs não são títulos de caráter financeiro -não representam obrigações financeiras, não têm valor de face, valor de resgate ou data de vencimento. Nessas condições, estão dispensados de autorização do Banco Central para ser criados e emitidos.
Os Cepacs revelam enorme potencial para auxiliar na política de desfavelamento, melhorias de cortiços, restauração e manutenção de bens tombados. No caso do desfavelamento, por exemplo, possibilitarão implantar programas de titulação de áreas ocupadas.
Mediante autorização legislativa, o proprietário de um terreno invadido por favela poderá receber Cepacs em troca da cessão da propriedade ao município, que a repassará aos favelados.
Mas, além disso, o lamentável caos no trânsito de São Paulo oferece mais uma preciosa oportunidade para uso dos Cepacs.Após o Plano Real, 300 mil novos veículos passaram a entupir as ruas da cidade. Diariamente, são feitos 1.100 novos emplacamentos, gerando uma frota de 4,5 milhões de veículos. Os engarrafamentos diários aumentaram de 67 kms para 96 kms. A cidade tem apenas 43 kms de metrô, ao passo que seriam necessários 400 kms.
Como enfrentar esses problemas? Aumentar o preço da gasolina implica racionar o uso de veículos, discriminando a população de baixa renda. Contingenciar o uso dos automóveis, além de dificuldades operacionais, pode implicar custos sociais significativos, dada a precariedade do transporte coletivo. Ampliação do sistema viário de superfície é cara, em face do preço crescente da terra urbana.
A solução moderna é a ampliação da rede de metrô. Contudo, os 360 kms adicionais de que São Paulo necessita custarão US$ 36 bilhões, ou, aproximadamente, dez anos do orçamento total da cidade. É muito, mas, para efeito de comparação, vale notar que a criação dos Cepacs na operação urbana Faria Lima (recentemente aprovada na Câmara Municipal) poderá gerar receita em torno de US$ 500 milhões, apenas naquela região.
Nesse sentido, os Cepacs poderão ser instrumento poderoso de alavancagem financeira para os investimentos no metrô. As regiões lindeiras às suas linhas poderão ser alvo de grandes operações urbanas, permitindo-se seu adensamento oneroso, através da venda dos direitos adicionais de construção. O adensamento respeitaria as regiões residenciais, formando bairros com gradientes completos em cada região da cidade. O conceito de "centro da cidade" deixaria de ser uma área concêntrica para acompanhar, linearmente, os trilhos do metrô.Os Cepacs representam um precioso instrumento de obtenção de recursos para a execução de projetos de investimentos inadiáveis em infra-estrutura urbana e na solução de aflitivos problemas sociais, em parceria com o setor privado, sem aumentar ou criar impostos novos e sem qualquer acréscimo no passivo financeiro do município.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA)