Uma verdadeira reforma tributária deve propor soluções para vários problemas fundamentais. Deve ser capaz de arrecadar, para que o governo possa atender à demanda por serviços públicos; deve ser neutra e buscar eficiência alocativa, para minimizar as distorções causadas por impostos nas decisões dos agentes econômicos; deve ser simples e pouco dispendiosa, para minimizar o chamado "peso morto" tributário; e deve ser justa, respeitando os padrões vigentes de eqüidade social. As várias propostas apresentadas na Comissão de Reforma Tributária buscam atender a esses critérios. Os projetos em discussão possuem vantagens e desvantagens, avançam em alguns aspectos e retrocedem em outros. O que pretendo expor neste artigo, contudo, é a existência de dois problemas preliminares, que, se não forem devidamente atendidos, farão de qualquer reforma tributária um mero "aperfeiçoamento do obsoleto", parafraseando Roberto Campos. O primeiro é melhorar o padrão de incidência dos impostos no Brasil. Sabidamente, a brutal elevação da carga tributária do patamar médio de 23%, nos anos 70 e 80, para os 30% atuais ocorreu concomitantemente com o estreitamento da base de incidência dos impostos. O crescimento da sonegação, da evasão e a fuga para a economia informal produziu um sistema que sobrecarrega a economia formal, asfixia as empresas organizadas e prejudica o assalariado com carteira assinada. Como nos ensinou Mário Henrique Simonsen, o pior imposto é aquele que pode ser sonegado. Um segundo problema é o custo elevado do atual sistema tributário. A sociedade arca com pesados encargos para atender às exigências fiscais, tanto para a manutenção da gigantesca máquina arrecadatória da União, da Previdência, dos 27 Estados e dos quase 6 mil municípios, como para suportar os custos operacionais dos Poderes Legislativo e Judiciário, que devem legislar e julgar os milhões de processos de ordem tributária que entopem a Justiça brasileira. A isto ainda se deve somar os custos administrativos das empresas vinculados diretamente a exigências burocráticas do sistema. Discutem-se, hoje, duas concepções acerca da construção de um novo modelo tributário para o Brasil. De um lado, a visão ortodoxa, esposada no texto do relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Mussa Demes. De outro, inspirada nas propostas do Imposto Único, surge uma concepção atrevida e inovadora, a Proposta Alternativa, que pode ser consultada pela Internet (www.marcoscintra.org), trabalho que reúne a contribuição de vários deputados e ex-deputados, como Luís Roberto Ponte, Francisco Horta, Alberto Mourão, Edinho Araújo, Ronaldo Vasconcellos e eu mesmo, e abre maior espaço para os chamados impostos não declaratórios, cuja principal característica é serem arrecadados de maneira automática, informatizada, eliminando a evasão e a sonegação. São tributos de baixíssimo custo de arrecadação, desburocratizados e, consequentemente, imunes à corrupção. O pré-relatório do deputado Mussa Demes mantém a estrutura tributária atual, ainda que proponha importantes avanços em itens como a defesa do contribuinte, o combate à guerra fiscal e a racionalização da complexa legislação do ICMS. Por outro lado, rejeita integralmente a contribuição que os chamados impostos não declaratórios poderiam trazer ao aperfeiçoamento do sistema tributário brasileiro. Nesse sentido, a Proposta Alternativa serve de contraponto ao texto do relator, na medida em que introduz dois importantes tributos não declaratórios (o Imposto sobre Movimentações Financeiras, IMF, e o Imposto Seletivo), em substituição a vários outros tributos. Importante notar que tanto a proposta de Mussa Demes quanto a Proposta Alternativa apresentam diagnósticos muito semelhantes, ou seja, buscam eliminar as contribuições sociais sobre faturamento (PIS, Cofins, CSSL e CPMF) e acabar com a multiplicidade de impostos sobre circulação (IPI, ICMS e ISS). A grande diferença entre elas, no entanto, é que o deputado Mussa Demes encarrega o IV A nacional e declaratório de ser o imposto básico do sistema brasileiro, ao passo que, na Proposta Alternativa tal função seria exercida pelos dois tributos não declaratórios, o IMF e o Seletivo. O Projeto Alternativo tem as seguintes características:
Assepsia tributária: elimina o IPI, o ICMS e o Imposto de Renda das empresas, tributos de grande complexidade burocrática, altos índices de evasão e elevados custos operacionais; elimina ainda várias contribuições sociais altamente poluidoras do sistema tributário atual, ou seja, PIS, Cofms, CSSL, e CPMF;
Imposto de Renda apenas para grandes rendimentos: o Imposto de Renda da Pessoa Física passa a isentar imos rendimentos de até 20 salários mínimos mensais, o que exclui, dessa forma, de tributação mais de 90% da população brasileira.
Desoneração dos resultados da produção: com a eliminação do IRPJ, o lucro das empresas, se reinvestido, não tem tributação, estimulando a produção e o emprego; o lucro distribuído, contudo, é alcançado no Imposto de Renda das Pessoas Físicas dos cotistas e acionistas das empresas; continua existindo tributação de renda na fonte sobre todos os rendimentos financeiros e de capital;
Impostos não declaratórios: os tributos declaratórios eliminados na Proposta Alternativa são substituídos por dois impostos não-declaratórios, o Imposto Seletivo e o Imposto sobre Movimentação Financeira, ambos insonegáveis e com arrecadação simples e pouco dispendiosa.
Desoneração da folha de salários das empresas: seguindo proposta anterior de Ives Gandra da Silva Martins, a contribuição patronal ao INSS é eliminada e substituída por contribuição sobre movimentação financeira.
Cumpre notar que não procedem os temores acerca: a) da cumulatividade do IMF (já que a sua alíquota será baixa e ele substituirá vários outros tributos como o ICMS e as contribuições patronais ao INSS); b) das dificuldades de desoneração das exportações (que é possível mediante o uso de pauta de rebates preparados com o auxilio de matrizes insumo-produto do IBGE, prática aceita e recomendada pela OMC); c) do impacto da cumulatividade nos mercados financeiros (já que, na Proposta Alternativa, a movimentação nos mercados financeiros e de capitais estará isenta no IMF); e d) de eventual desintermediação bancária (pois a proposta prevê a proibição de endossos e de emissão de cheques ao portador, além de exigência de trânsito de valores e de obrigações pelo sistema bancário brasileiro, sob risco de perda de legitimidade da transação). Vê- se, portanto, que a Proposta Alternativa, além de buscar atender aos reclamos tradicionais da eficiência e equidade, avança significativamente em três aspectos essenciais no redesenho do sistema tributário atual: simplicidade, insonegabilidade e baixo custo, público e privado. Ademais, amplia o universo de contribuintes, alcançando a economia informal e os sonegadores. A Proposta Alternativa ainda realça os direitos e garantias dos contribuintes. Haverá exigência de anualidade e antecipação mínima de seis meses para alterações tributárias e restrições à cobrança de empréstimos compulsórios. Novos impostos e aumento de alíquotas exigirão prévio referendo popular e fica proibido legislar sobre tributos por medida provisória. Ainda se estabelecem tetos e pisos legais para as alíquotas dos tributos existentes, contendo, assim, a escalada do apetite fiscalista do governo. Finalmente, cumpre apontar que o impacto do IMF na carga tributária setorial e nos preços finais ao consumidor foi calculado a partir de simulações efetuadas com o uso de matriz insumo-produto do IBGE. Pelas simulações, vê-se que o IMF, com alíquota de 1,35% nos débitos e nos créditos bancários, arrecada mais e com menor impacto nos preços ao consumidor final do que um tributo tipo ICMS.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), e professor titular da Fundação Getulio Vargas.