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Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Reforma tributária na indústria, comércio e serviços

O relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Mussa Demes, apresentou um pré-parecer que, tudo indica, deverá sofrer poucas alterações ao ser transformado no relatório final. Por outro lado, o governo, por intermédio do secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, fez severa crítica técnica ao conteúdo daquele anteprojeto e encaminhou outra proposta à Comissão de Reforma Tributária. Neste artigo, descreverei a falha técnica do anteprojeto do deputado Mussa Demes e apresentarei simulações numéricas acerca de ambos os projetos, comparando-os com a situação atual. Concluirei que em ambas as propostas haverá forte impacto na carga tributária setorial, com ganhos e perdas bem definidos dentre as várias atividades econômicas. Tanto a proposta do deputado Mussa Demes quanto a do governo eliminam tributos federais (IPI, PIS, Cofins, CSLL e CPMF) e extinguem o atual ICMS (estadual) e o ISS (municipal). Ambos criam um novo ICMS, que além da atual base de incidência, que é fundamentalmente a indústria e o comércio, alcançará também as atividades prestadoras de serviços. Ambos introduzem uma nova espécie tributária no Brasil, o Imposto de Vendas a Varejo (IVV). A proposta do governo ainda cria, subsidiariamente, um imposto especial de vendas ao consumidor final, chamado de seletivo, que incidirá sobre fumo, bebidas, veículos, energia elétrica, telecomunicações e combustíveis, e introduz um imposto semelhante à CPMF -o Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF)-, tornando-o dedutível do valor devido de qualquer outro tributo federal. Vejamos agora a principal diferença entre eles. Para substituir a arrecadação dos tributos extintos, o deputado Mussa Demes cria um ICMS tripartite, cuja alíquota será composta de uma parcela estadual, uma parcela federal e uma Contribuição Social Geral (CSG). A parte da seguridade social será diretamente arrecadada pelo INSS, e cobrada em todas as operações. As operações internas aos Estados terão duas alíquotas -uma estadual e outra federal. Já nas operações interestaduais a alíquota estadual será zerada, e seu valor somado à alíquota federal. Espera-se, dessa forma, acabar com a guerra fiscal e, no caso de operações entre Estados, transferir a receita desse novo ICMS inteiramente para o Estado consumidor. Em comparação, o projeto do governo prevê que o novo ICMS seja totalmente federal, ainda que com receitas compartilhadas automaticamente com os Estados. O problema com o projeto do deputado Mussa Demes é que os débitos e créditos estaduais e federais não se comunicam. Dessa forma, por exemplo, empresas predominantemente importadoras de outros Estados e vendedoras internas sofrerão dois perigosos efeitos: 1) acumularão créditos com a União e 2) passarão a ter débitos em seus Estados sem créditos equivalentes, o que significará uma brutal elevação em sua carga tributária. Um caso numérico: uma empresa comercial instalada no Distrito Federal, que compra vidro em São Paulo (R$ 100) e revende em Brasília (R$ 200). Suponha-se uma alíquota estadual de 18% e a federal de 7%. Na aquisição em São Paulo o comerciante brasiliense se credita em R$ 25 contra a União. Quando vender o produto em Brasília, haverá um débito de R$ 14 com a União, e um débito de R$ 36 com o DF. Acumulará um crédito de R$ 11 contra a União, e deverá recolher R$ 36 ao DF. Vê-se, portanto, que, além dos créditos que se acumularão, o comerciante ainda arcará com um recolhimento estadual de 18% sobre seu faturamento, já que o sistema não gerou créditos estaduais. Nesse exemplo, a proposta elimina impostos sobre o faturamento de 4,03% (soma do PIS, Cofins e CPMF), mas cria outro de 18% sobre o mesmo faturamento. O mesmo ocorrerá, mutatis mutandis, com empresas essencialmente exportadoras para outros Estados, que acumularão créditos contra seus Estados e sofrerão forte tributação federal sobre o faturamento. Cumpre dizer que eventuais soluções para esse problema, como a criação de câmaras de compensação, reembolso dos créditos, ou transferência de créditos para outros contribuintes implicarão obstáculos burocráticos insuperáveis, sendo quase totalmente inviáveis na prática. Faremos, a seguir, uma comparação das estimativas quantitativas elaboradas pelo governo com as do projeto do relator da Comissão de Reforma Tributária. Surpreendentemente, o deputado Mussa Demes ainda não apresentou publicamente qualquer simulação numérica de sua proposta. Circula, no entanto, um estudo elaborado por Roberto Nogueira Ferreira Consultores Associados Ltda., que tomaremos como referência básica sobre o anteprojeto do relator. Com o objetivo de aprofundar a análise, recalculamos as simulações acerca da proposta do deputado Mussa Demes usando a base de dados fornecida pelo governo. Supõe-se que os dados oficiais sejam mais precisos, pois partem de informações reais coletadas pela Receita Federal. Os dados da tabela 1 mostram a situação atual, e a que resultaria nos três casos em estudo: 1) a proposta da Comissão de Reforma Tributária (CRT "A"); 2) a mesma proposta anterior recalculada com os dados do governo (CRT "B"); e 3) a proposta do Ministério da Fazenda. Como se pode observar acima, a alíquota para o novo ICMS prevista no pré-projeto do deputado Mussa Demes será de 24%, tomando-se por base o estudo de Roberto Ferreira, e de 32,8%, adotando-se a base de dados da Receita Federal. O projeto do governo, por prever arrecadação adicional vinda do Imposto Seletivo (IS) e do IMF, permite uma alíquota do novo ICMS de 27,4%. Nos três casos, portanto, haveria elevação na alíquota do novo ICMS relativamente à sua atual estrutura. Trata-se de resultado pernicioso, pois, como se sabe, a sonegação, a elisão e a corrupção fiscais variam na proporção direta das alíquotas nominais dos tributos, principalmente quando se trata de impostos declaratórios como o que está sendo proposto. Cabe indagar, agora, acerca dos impactos setoriais nas estruturas tributárias em apreço. As tabelas 2, 3 e 4 comparam a situação atual com a que surgiria com a adoção das propostas em análise no comércio, na prestação de serviços e na indústria. Na atividade comercial percebe-se a elevação da carga tributária, de 7,44 % e de 41,21% nas duas hipóteses do projeto do deputado Mussa Demes. Dadas as dificuldades técnicas apontadas acima, de débitos sem créditos, e de créditos sem débitos, a situação ficaria ainda mais grave no caso de comércio interestadual. Em situação de compra interestadual de produtos e revenda exclusivamente interna, pode ser demonstrado que os aumentos da carga tributária seriam de 9,79% e de 47,22%, respectivamente. Caso a compra fosse interna e a revenda exclusivamente interestadual, é fácil comprovar que os aumentos tributários seriam de absurdos 184,49% e 286,91%. Na proposta do governo, a elevação da carga tributária para o comércio seria de 29,70%, 5,42% e 140,39%, nas situações exemplificadas acima. Embora sejam aumentos inferiores aos do projeto do deputado Mussa Demes, continuam sendo totalmente inaceitáveis. A inclusão da prestação de serviços no regime do novo ICMS implicará brutal elevação de carga tributária, como pode ser visto na tabela 3. Certamente haverá necessidade de algum regime especial para o setor, o que, por um lado, aliviaria o confisco tributário, mas, por outro, poderia exigir, para compensar a perda de arrecadação, uma alíquota modal do ICMS ainda mais elevada do que as estimadas acima. Finalmente, as estimativas para o setor industrial mostram um quadro diferente. Como seria esperado, a eliminação da cobrança do IPI poderá implicar ganhos para os setores tributados mais pesadamente. Adotou-se, no exemplo abaixo, a alíquota modal do IPI de 4%, sugerida por Roberto Nogueira Ferreira. Nota-se claramente que os modelos tributários propostos são mais favoráveis ao setor industrial. No exemplo abaixo, haveria queda de carga tributária adotando-se o projeto do relator Mussa Demes. Tal vantagem é fortemente acentuada para os setores industriais com alíquotas do IPI acima de 10%. É fácil verificar que vários ramos de produção poderiam ter quedas significativas de carga tributária, o que ajuda a compreender o apoio que essas propostas estão recebendo das entidades representativas das indústrias. Claramente os projetos convencionais de reforma tributária não atendem aos anseios da sociedade, que deseja mais simplicidade, menos impostos, alíquotas mais baixas e a ampliação da base de contribuintes mediante a incorporação ao universo tributário dos sonegadores e da economia informal. Quase nada disso se consegue em nenhum dos projetos discutidos acima. A alíquota necessária do novo ICMS será excessivamente alta, o que certamente estimulará a sonegação e a corrupção fiscais. Assim, em vez de se ampliar a base tributária, os projetos analisados contribuem para estreitá-la ainda mais.

Ademais, a profunda assimetria na distribuição da carga tributária brasileira que resultará da aplicação dos modelos analisados impedirá que se contemple uma reforma tributária minimamente neutra. Pelo contrário, deles resultarão vários poderosos ganhadores e uma multidão de pequenos perdedores.

 

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA).

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