Uma pessoa que pela primeira vez se interessasse em conhecer a literatura sobre reforma tributária chegaria a uma curiosa conclusão. A de que toda a polêmica gira quase que exclusivamente em torno da extinção dos tributos em cascata.
As principais entidades empresariais brasileiras divulgaram um duro manifesto contra o governo, cobrando a reforma tributária que não aconteceu. O documento, contudo, demonstra que a verdadeira meta dos empresários aparentemente não foi a ampla discussão da questão tributária, com todos os seus descalabros e disfunções, mas apenas um discurso contra a cumulatividade, ou seja, um manifesto contra os impostos em cascata. Nada foi reivindicado quanto à sonegação, à corrupção, aos altos custos relacionados às obrigações acessórias tributárias impostas aos contribuintes, à burocracia ou à iniqüidade do atual sistema de arrecadação de impostos no Brasil. O mais curioso é que os representantes das classes produtivas não enxergam sua própria realidade ao se manifestarem contra os impostos em cascata. Mais de 90% das empresas brasileiras são tributadas de forma cumulativa. Não se trata de uma imposição, mas de sua própria opção. Roberto Campos certa vez se referiu à intrigante distinção feita pelos empresários brasileiros entre dois tipos de cascatas.
Uma, tida como maligna, inclui os odiados CPMF, PIS e Cofins. Contra eles são disparadas todas as críticas, justas ou injustas. Por outro lado, há tributos que, mesmo sendo cumulativos, são unanimemente elogiados pelos empresários. São eles o Simples e o Imposto de Renda das empresas tributadas pela modalidade do lucro presumido. Nestes dois casos, a opção é exclusivamente das empresas, e ao fazerem esta escolha estão reduzindo suas obrigações tributárias. Merecem, portanto, rasgados elogios das lideranças empresariais, ainda que, do ponto de vista técnico, o Simples e o do lucro presumido sejam impostos em cascata tanto quanto a CPMF e a Cofins.
Mas a ausência de lógica vai além. O ICMS, tido como imposto moderno por ser sobre valor agregado, carrega forte cumulatividade em sua operação. Quando a cadeia de débitos e créditos se rompe, ele se torna cumulativo, ainda que, quanto a isto, não haja reclamações. Por exemplo, o setor agrícola não encontra meios de se creditar do ICMS embutido no preço de seus insumos. Os prestadores de serviços são igualmente tributados pelo ICMS@e forma cumulativa, já que não se creditam do ICMS cobrado nas etapas anteriores da produção. O ISS é cumulativo, da mesma forma que o será o Imposto de Vendas a Varejo (VV), que os representantes da classe empresarial defendem em seu projeto de reforma tributária.
Mais surpreendente ainda é que mesmo a legislação do ICMS vem sendo alterada para que ele passe a ser arrecadado de forma totalmente cumulativa. Um exemplo são as recentes decisões que autorizam o setor de alimentação e restaurantes em São Paulo a recolherem o tributo como proporção do faturamento bruto. Mais uma vez, o fato ocorre por exclusiva opção, e com os agradecimentos das empresas, que se rebelaram contra a burocracia e a inviabilidade dos complexos mecanismos não-cumulativos de cobrança do ICMS. Vê-se a ambigüidade que envolve o debate dos tributos em cascata, já que até mesmo o maior imposto sobre valor agregado do país, o ICMS, vem se tornando cada dia mais cumulativo.
Assim, quando interessa, quando a carga tributária pode ser reduzida, a cascata é considerada benigna até pelos ferrenhos críticos da cumulatividade. Mas quando a cascata implica carga tributária alta e insonegável, torna-se diabólica. É forçoso concluir que a crítica à cumulatividade é revolta contra a alta carga tributária. Pena não seja explicitado, trazendo transparência e racionalidade ao debate.
Mas quais são as críticas substantivas à cumulatividade?
Descritas por seus adversários como odiosos impostos em cascata, a CPMF e a Cofins são chamadas de impostos burros, injustos, antiprodução, causadores de despoupança, e prejudiciais às exportações. O analista novato não poderá evitar a impressão de que, com a eliminação dos tributos cumulativos, tudo será resolvido na economia brasileira, e que, como num passe de mágica, o sistema tributário brasileiro passaria a ser racional, justo, moderno e eficiente.
Essa "cascata" da cascata precisa ser analisada. Não há nada mais medíocre do que aceitar, sem rigorosa avaliação crítica, os preconceitos e os chavões que estas opiniões expressam.
Discutir a reforma tributária focando a questão da cumulatividade compreende um erro fundamental. A sonegação, a evasão fiscal, o alto custo para o setor público e para as empresas, a corrupção e a iniqüidade são os tumores que precisam ser eliminados do sistema de impostos brasileiro. Isto somente será possível quando o país demolir a atual estrutura baseada em impostos declaratórios.