HAVERÁ MENOS CONTRIBUINTES CHAMADOS A SUPORTAR UMA CARGA DE IMPOSTOS CRESCENTE.
O ministro Antônio Palocci está equivocado ao dizer que os impostos indiretos representam a maior fonte de distorções a serem solucionadas na reforma tributária. Afirma o ministro que as faixas de renda mais baixa pagam 25% de impostos indiretos relativamente a seus rendimentos totais, ao passo que os mais ricos pagam apenas 13%. Com base nesse diagnóstico, o ministro preconiza que o núcleo da reforma tributária seja a revisão dos impostos sobre circulação e consumo (como o ICMS, IPI e ISS) e o fim da cumulatividade do PIS, Cofins e CPMF. Concentrar a crítica apenas nos tributos indiretos não permite a avaliação correta da equidade do sistema. As faixas de renda mais alta pagam menos impostos de consumo do que as camadas mais pobres porque consomem uma parcela menor de sua renda. Contudo, a parcela não consumida e, portanto, poupada, bem como os rendimentos de capital (lucros, juros e aluguéis), que representam uma fração maior da renda dos mais ricos, poderiam, em tese, sofrer uma incidência tributária elevada. Nesse caso, sem avaliação mais detalhada, não haveria como concluir, a priori, pela regressividade do sistema.
O fato é que, se há sonegação e outras formas de evasão, fenômeno disseminado entre os agentes econômicos no Brasil, a distribuição da carga tributária entre as várias faixas de renda fica impossível de ser avaliada mediante simples constatações das alíquotas formais dos impostos. Em todas as faixas de renda incidem tributos cuja efetiva incidência se torna uma variável totalmente aleatória a partir das possibilidades de evasão a que os impostos declaratórios estão sujeitos.
A aferição da equidade do sistema tributário não deve se restringir à análise parcial da incidência de um ou outro tipo de imposto, como faz o ministro Palocci. O que interessa é aferir, ex post, quanto de imposto cada grupo econômico efetivamente recolhe em relação à sua renda total. Além disso, o que interessa no estudo da incidência de um sistema tributário não é a carga tributária formal, aquela definida nos códigos tributários, mas o conhecimento da carga efetiva, aquela que de fato incide sobre os cidadãos após a aplicação de todos os desvios e filtros que o sistema declaratório permite, ou melhor, estimula. O maior desafio do sistema tributário brasileiro é garantir a arrecadação necessária ao custeio das atividades públicas democraticamente aprovadas pela sociedade e fazer todos os cidadãos brasileiros dividirem os impostos devidos na proporção de sua capacidade de pagamento. Nesse sentido, combater a evasão em suas mais variadas formas, desde a sonegação pura e simples até as sofisticadas técnicas de elisão e de "planejamento tributário", é hoje a pedra de toque na reforma do sistema tributário nacional.
Mas o que dificulta o processo de aprovação das reformas? Durante os acirrados debates, ocorridos ao longo de 1999-2000, na Comissão Especial de Reforma Tributária da Câmara dos Deputados, era comum ouvir diagnósticos românticos sobre as funções do sistema tributário.
Havia quem achasse que a reforma deveria ser uma poção mágica capaz de estimular o crescimento, corrigir a distribuição de renda, acabar com a guerra fiscal, simplificar a burocracia arrecadatória, reduzir custos, preservar o meio ambiente, acabar com a sonegação e muitos outros desideratos. Essa postura, ainda comum nos debates sobre o tema, implica uma impossibilidade material da concretização daquelas metas, já que o número de objetivos é muito maior do que o número de instrumentos para alcançá-los. Daí o impasse. O essencial é privilegiar a função fiscal dos tributos: arrecadar o que o governo necessita para o custeio de suas atividades e distribuir a carga tributária entre todos os cidadãos de acordo com sua capacidade contributiva.
De fato, o governo já arrecada o que deseja. A carga tributária brasileira é a mais alta dentre todos os países de desenvolvimento médio, tendo chegado ao surpreendente patamar de 37% do PIB. O problema é que os contribuintes que pagam impostos pagam demais, muito mais do que sua cota teórica de 37% de sua renda, ao passo que muitos pagam menos do que poderiam e outros ainda não pagam quase nada proporcionalmente à sua capacidade contributiva. Esse é o maior problema a ser superado.
Atualmente, o sistema enfrenta uma inconsistência interna que poderá levar a economia brasileira ao desastre. Os que pagam impostos demais perdem competitividade continuamente e os que se evadem conseguem sobreviver, apesar de serem menos competitivos.
O Brasil pratica uma forma de seleção natural invertida. Avançar na reforma tributária dependendo crescentemente de tributos declaratórios, como a proposta de unificação dos tributos sobre circulação e contribuições sociais em um IVA global, será o caminho certo para o desastre. A alíquota necessária será exorbitante, o universo de contribuintes não se ampliará, ao contrário, será ainda mais contraído pelo crescimento da evasão, e a carga tributária dos relutantes contribuintes se tornará insuportável. Em outras palavras, a criação de um IVA que concentre a arrecadação dos atuais impostos indiretos poderá reduzir o universo tributário, em vez de ampliá-lo.
Haverá menos contribuintes chamados a suportar uma carga tributária crescente, corroendo ainda mais a já frágil base de sustentação tributária nacional. O fenômeno da erosão do potencial arrecadatório das bases tributárias convencionais vem sendo notado em todo o mundo e, por isso, a experiência brasileira com tributos não-declaratórios sobre movimentação financeira vem sendo observada com agudo interesse em vários países.
A saída é evidente e salta aos olhos: ampliar, em vez de reduzir, o espaço dos impostos não-declaratórios em nosso sistema tributário. A movimentação financeira será a base tributária do futuro. Em todo o mundo, foi o Brasil que deu a largada com os impostos eletrônicos (CPMF) e com a unicidade tributária (Simples), e deve seguir sem retrocessos nessa mesma direção.
Marcos Cintra, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), professor-titular e vice-presidente da FGV, é autor do livro "A Verdade sobre o Imposto Único".
Site: www.marcoscintra.org
E-mail: meintra@marcoscintra.org