"A sociedade humana se baseia na enganação recíproca." - Pascal
Neste final de ano, a sociedade brasileira foi protagonista de uma grande farsa. O governo acaba de anunciar, com estardalhaço, que completou a reforma tributária. Indiretamente, induz a uma conclusão: a de que logrou realizar no seu primeiro ano de atuação o que o governo FHC não foi capaz de fazer em oito.
Trata-se de comparação injusta. No governo passado, Executivo e Congresso trabalharam arduamente na elaboração de vários projetos de reforma tributária. Não houve consenso, e a questão continuou na pauta de discussões. O Executivo, por convicção, não aceitou a proposta elaborada pela Câmara dos Deputados por julgá-la equivocada e tecnicamente deficiente. Por outro lado, o Poder Legislativo não cedeu às pressões do governo. Contudo o impasse enriqueceu o debate, consolidou pontos de vista e esclareceu a sociedade acerca das dificuldades inerentes à questão.
Neste governo a discussão foi diferente. A pressa empobreceu os debates e, frente ao inevitável conflito que o tema sempre suscita, a opção do governo foi a de escamotear a polêmica, fragmentar as ações, usar de táticas diversionistas e conduzir a questão estritamente dentro dos limites de seus interesses mais imediatos, ou seja, manter a arrecadação da CPMF e prorrogar a DRU, Desvinculação das Receitas da União. Para obter os necessários apoios políticos, jogou algumas migalhas para governadores e prefeitos se refestelarem.
Foi um remendo, quase totalmente possível de ter sido feito por medidas infraconstitucionais. Pouco, ou quase nada, foi feito para aperfeiçoar o sistema no sentido de corrigir algumas das suas mais clamorosas distorções, como a sua elevada taxa de corrupção, a crescente evasão, a escandalosa sonegação e a escorchante carga de impostos cobrada de alguns setores menos capazes de praticar uma ação defensiva eficiente, como os assalariados e os prestadores de serviços da economia formal.
Na realidade, a meia-sola tributária do governo Lula foi uma peça encenada em vários atos. A PEC 74-A do Senado Federal, a chamada reforma tributária, foi certamente o ato menos importante de todos. As modificações no sistema tributário ocorridas em 2003 foram implementadas por leis ordinárias, por leis complementares e até por medidas provisórias. Enquanto a sociedade era distraída com discussões inócuas no Câmara e no Senado, o governo agia nos bastidores e fez o que bem entendeu para concretizar suas pretensões.
O primeiro ato foi a vergonhosa alteração do ISS. Os poucos aperfeiçoamentos que, eventualmente, a lei complementar 116/2003 possa ter trazido, e certamente trouxe alguns, foram embaçados pelo absurdo teto de 5% na alíquota daquele imposto, que passou a valer a partir de agosto último. Tal medida beneficiou principalmente um setor que menos benesses merece, o dos bancos, que, em geral, eram tributados com alíquotas de 10%. Essa medida custará aos municípios brasileiros perdas anuais de mais de R$ 500 milhões. A quem essa "reforma" interessou, os anais da história ainda haverão de esclarecer.
O segundo ato foi encenado por medida provisória, a MP 135, que alterou a Cofins tornando-a uma contribuição não-cumulativa. O tema já foi exaustivamente analisado e repudiado por praticamente todos os setores. O mais surpreendente é que a não-cumulatividade da Cofins, exigência imposta e cobrada pelo FMI nas discussões para a renovação do acordo com aquele organismo internacional, atende a insistentes reivindicações de alguns setores empresariais que instrumentalizaram as outras representações sindicais patronais para conseguir transferir impostos para os segmentos que mais empregam mão-de-obra, os prestadores de serviços, que eram tidos, equivocadamente, como beneficiários de uma carga tributária mais leve. Agora que a maldade foi perpetrada, descobre-se que as perdas foram generalizadas, que a vantagem da não-cumulatividade é um mito e que há necessidade de urgentes medidas corretivas.
Pateticamente, o governo anuncia que, para atenuar os recém-descobertos males da não-cumulatividade, alguns setores de "alto interesse social" poderão permanecer no sistema cumulativo, que, de odiado, passa a ser objeto de desejo de todos os setores produtivos. Educação, saúde, comunicação, informática, agronegócios, dentre outros, passarão a ter regimes especiais, cheios de exceções e perigosos precedentes. A burocracia se acerca das vítimas com seu abraço de afogado e promete novas medidas corretivas como a desoneração da folha de salários das empresas para compensá-las por terem de viver em um mundo não-cumulativo.
A tão elogiada não-cumulatividade tributária não passou de um engodo a exigir compensações. E o governo é forçado a oferecer como paliativo o que sempre considerou ser o veneno, a opção de continuar com o sistema cumulativo. A ironia dessa situação seria risível, se não fosse trágica em suas danosas consequências sociais e econômicas.
A cena final foi a aprovação da inócua PEC da reforma tributária. Na realidade, o que se aprovou de importante foi apenas a prorrogação da CMPF e da DRU. O resto continua a ser o que sempre foi: projetos que continuarão a ser debatidos no Congresso Nacional, como a unificação do ICMS (proposta de FHC que vem de 2001), a criação do IVA (proposta frustrada da Comissão de Reforma Tributária da legislatura passada) e a extinção da CPMF (há dezenas de projetos de lei nesse sentido no legislativo nacional). Como se vê, não se fez quase nada, a não ser fazer tudo continuar como está. De resto, joga-se muita fumaça nos olhos dos pobres pagadores de impostos, fazendo-os acreditar que o Congresso deliberou alterar importantes pontos do sistema tributário nacional.
A reforma tributária foi um grande blefe. O contribuinte não perceberá qualquer modificação para melhor em sua vida cotidiana. Na realidade, sobre os grandes temas de uma autêntica reforma, a grande deliberação do Congresso foi a de que o Congresso irá deliberar sobre elas!
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, é secretário das Finanças de São Bernardo do Campo e autor de "A verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003).