A crise financeira de 2008 pode ser explicada de forma bastante simples. Ela decorre do descasamento entre o valor dos títulos financeiros em circulação e o valor do lastro garantidor, como bens imobiliários e outros ativos. Durante anos, o estoque de crédito cresceu a taxas elevadas, e o lastro desse espantoso crescimento financeiro aumentou concomitantemente, impulsionado principalmente pelo mercado imobiliário americano. Mas a bolha nos preços dos ativos imobiliários estourou quando os mutuários começaram a tornar-se inadimplentes. Os financiamentos cresceram mais que a renda dos mutuários, e o valor de mercado das garantias caiu. Os títulos lastreados por esses imóveis tornaram-se ativos podres. Como haviam sido vendidos e refinanciados pelos “hedge funds” em todo o mundo, sem limites e com precária regulamentação, as perdas alastraram-se rapidamente. Para ter uma idéia, o BIS (Banco para Compensações Internacionais) registra, em dezembro de 2007, o absurdo volume de US$ 596 trilhões em contratos de derivativos, duas vezes o montante verificado no mesmo mês de 2005. Foi uma crise previsível, na medida em que o processo de descasamento ocorreu ao longo dos últimos dois anos, e não foram poucos os alertas emitidos por alguns especialistas. Mas eles foram ignorados pelas autoridades financeiras norte-americanas, entusiasmadas com a prosperidade do período. Teoricamente, há duas soluções: 1) sustentar os preços das garantias, principalmente dos ativos imobiliários, para tornar possível o início de um penoso, porém ordenado, processo de "desalavancagem" financeira, ou 2) deixar os títulos perderem valor até que o equilíbrio entre crédito e garantias seja restabelecido. A primeira alternativa já foi perdida pelas autoridades norte-americanas, pois pouco foi feito para sustentar os mutuários inadimplentes e preservar o valor de mercado dos imóveis. Isso poderia ter sido feito mediante amplo programa público de refinanciamento de hipotecas. A segunda alternativa está em curso: deixar os ativos perderem valor, gerando perdas nos balanços do setor financeiro. Isso, contudo, contamina o mercado real por causa da perda de confiança no setor financeiro, da conseqüente queda de liquidez e da severa restrição de crédito à produção e ao comércio. As engrenagens da economia param de girar por falta de lubrificação. Os líderes das principais economias se reuniram no fim de semana nos EUA para encontrar soluções para o pânico que se instalou nos mercados mundiais. Uma coisa é certa: não haverá recursos públicos capazes de absorver os agonizantes títulos podres, nem mesmo se todos os governos dos países ricos se juntarem. A crise agora é de confiança, e a única alternativa é a compra de participação acionária do setor bancário pelos tesouros dos países envolvidos. Em face da gravidade do pânico, apenas os governos são capazes de garantir liquidez e solvência. Nenhuma outra instituição é capaz de reverter essa maré de desconfiança e sustar uma iminente corrida bancária mundial. Espero que, ao ser publicada, esta coluna, escrita na sexta-feira, possa ser seguida de notícias positivas das autoridades do G7 reunidas no sábado e ontem nos EUA. Com certeza, as soluções propostas não serão muito diferentes das que estão discutidas aqui. Mas, se a cúpula do G7 não se entender, e a forte participação estatal no setor bancário não for decidida rapidamente, há que esperar tempos bicudos à frente.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA),
e professor titular da Fundação Getulio Vargas.