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Roberto Campos - 30/06/1991
"Quando a gente sobe no telhado, é melhor não tirar a escada."
Wittgenstein
O sistema fiscal brasileiro virou uma bagunça transcendente. Inclui 53 figuras tributárias em três níveis de governo. São altos os custos de arrecadação para o governo e o custo da obediência para as empresas, que enfrentam fiscais audazes, às vezes incapazes e sempre vorazes.
Houve retrocesso. O Código Tributário, incorporado à Constituição de 1967, foi modernizante para sua época. Substituiu o imposto sobre vendas pelo imposto sobre valor adicionado, antes que vários países europeus o fizessem. O Fundo de Participação de Estados e Municípios e os fundos partilhados (imposto único sobre combustíveis, minérios e eletricidade) representavam razoável compromisso entre a conveniência de uma arrecadação centralizada e a necessidade de redistribuir regionalmente a renda. Houve depois desvios da concepção original, que causaram impressão de exacerbado centralismo. O imposto único sobre combustíveis foi deformado pela criação do PIS-Pasep e do Finsocial, impostos regressivos em cascata. O Imposto Territorial Rural, que a União cobraria em benefício dos municípios, não foi devidamente ativado nem como fonte de receita nem como instrumento de reforma agrária. Com a nova Constituição, vários defeitos se agravaram. Criou-se a contribuição social sobre os lucros e o faturamento das empresas, claros exemplos de bitributação. Previu-se a implantação do imposto sobre as grandes fortunas, que mundialmente gera pouquíssima receita e incentiva a fuga de capitais. Instituiu-se o imposto sobre semimanufaturados, na imbecil ilusão de que se consiga exportar impostos. Como se isso não bastasse, a incorporação dos antigos impostos únicos ao ICMS dos Estados deixou a União sem recursos para as rodovias-tronco e as centrais elétricas. Várias propostas de reforma fiscal têm surgido, todas, aliás, preferíveis à bagunça atual. A primeira foi a do professor Paulo Rabello de Castro, visando a uma drástica simplificação do Imposto de Renda: isenção para as classes de baixa renda e alíquota única proporcional de 10% (o dízimo) para todos os demais grupos, sem quaisquer deduções. Concordo com ele em que experimentaríamos dramático aumento de receita, pois se tornaria moralmente repulsiva a sonegação. A alegação da sabedoria fiscal convencional de que o imposto tem de ser progressivo para se redistribuir a renda é tão simpática quanto errada. Trata-se de um cacoete ideológico. Presume-se que o Estado seja um "justiciador", tributando sabiamente e gastando eticamente. A "justiça social" deve ser buscada do lado da despesa, que deve ser direcionada para as classes mais pobres. O imposto progressivo só faz desestimular os mais diligentes e criativos, que sofrem um confisco parcial e recorrem à engenharia da sonegação. É uma receita para a fuga de cérebros e de capitais. A segunda proposta é a do professor Ives Gandra Martins, que reduziria a cinco as grandes categorias tributárias: o Imposto sobre a Renda, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços, o Imposto sobre a Propriedade, o Imposto sobre o Comércio Exterior e a Contribuição Social. Seria uma vasta e bem-vinda simplificação. Mas o sistema fiscal brasileiro se tornou tão complexo e confuso que não bastam reformas. É preciso uma revolução. Mais atraente é a proposta do professor Marcos Cintra, de um "imposto sobre todas as transações financeiras", que se tornou objeto de um projeto de lei apresentado pelo deputado Flávio Rocha na Câmara. A ideia não é, ao contrário do que diz a sabedoria tradicional dos fiscalistas, ingênua ou inexequível. E apenas uma ideia insolentemente nova, cujo tempo já chegou. O sonho do imposto único é, em si mesmo, antigo. Vem dos fisiocratas franceses do fim do século 18 e foi ressuscitado, sob a forma do imposto único sobre a terra, de Henry George, no século passado. A novidade consiste em aplicá-lo na era industrial. Em essência, a proposta é substituir todas as variegadas formas de sucção, pelo Estado, da renda dos indivíduos por um imposto único sobre transações financeiras. Eliminar-se-ia toda uma caterva de impostos - IR, IPI, ICMS, ISS, IOF, IPTU, PIS-Pasep, Finsocial etc. Ficariam apenas as exações desejáveis por motivos extrafiscais, tais que o imposto sobre comércio exterior e o territorial rural (este como instrumento de reforma agrária) e, naturalmente, as taxas de prestação de serviços. As vantagens dessa simplificação são óbvias. A primeira é o desmonte de várias máquinas burocráticas: a máquina do fisco, em seus três níveis, federal, estadual e municipal, e a máquina de obediência das empresas, que representa talvez um terço dos custos burocráticos. Condição da eficácia do sistema, para geração de adequada receita, é que a abrangência seja máxima e a alíquota, mínima, de sorte que a evasão se torne um incômodo antes que uma tentação. A abrangência viria do fato de que, mais cedo ou mais tarde, na economia moderna, ao longo do processo produtivo, todas as transações exigem intermediação bancária. A economia de escambo só é possível ao nível de subsistência e o uso da moeda manual habitualmente se confina às microtransações, que de qualquer maneira não fazem parte do universo fiscal. O professor Marcos Cintra propõe uma alíquota de 2%, metade no lançamento credor e metade no lançamento devedor, e o deputado Flávio Rocha, a alíquota de 1%, metade sobre o solvente e metade sobre o beneficiário. Na fixação da alíquota levar-se-iam em conta a drástica redução do custo de arrecadação e a eliminação do desgaste inflacionário da receita, pois a arrecadação seria simultânea ao fato gerador. Desapareceria a fronteira entre a economia formal e a informal, na medida em que ambas seriam tributadas toda vez que fizessem transações financeiras na rede bancária. Vários dos argumentos levantados que ouvi são inconsistentes. Um deles seria o estímulo à verticalização das empresas. Mas esse já existe com os atuais impostos em cascata. Ademais, a tendência moderna é a da especialização de unidades produtivas, segundo a linha de eficiência, e incorporação de componentes ao produto final just in time. Não há também vantagens em colocar o fisco mais próximo do contribuinte, se com isso crescem o custo da coleta e as oportunidades de evasão. É muito mais fácil fiscalizar uma centena de bancos do que milhares de empresas e milhões de indivíduos. O problema da alocação de receita entre União, Estados, municípios e Previdência Social seria objeto de lei especial, que estabeleceria os critérios de partilha, de modo a reproduzir a atual repartição de receitas. Conviria talvez corrigir o excessivo emagrecimento da parcela federal resultante da nova Constituição, que condena o governo central a um déficit estrutural. Aos bancos não caberia senão creditar a receita aos beneficiários segundo os critérios de partilha. Estes seriam os melhores e mais ágeis fiscais. O questionamento judiciário das medidas do Plano Collor ameaça criar um colapso de receita e um alargamento da brecha deficitária, com resultante aceleração inflacionária. Estamos pendurados no telhado. É preciso repensar o fisco. O imposto sobre transações talvez seja a escada nova de que necessitamos.