Atividades inovadoras que mudam paradigmas e afetam práticas estabelecidas normalmente não chegam pacificamente ao mercado. Tecnologias disruptivas (que destroem e/ou substituem as tecnologias antigas) geram conflitos quando ameaçam destruir padrões e contrariam interesses. Durante a Revolução Industrial no século XVIII, os donos de empresas que implantavam máquinas operatrizes modernas em suas linhas de produção eram intimidados e agredidos pelos sindicatos laborais. Na França, temendo o desemprego, os trabalhadores jogavam seus calçados (sabots) nas engrenagens das máquinas com o intuito de impedir o seu funcionamento, dando origem ao termo sabotagem. Situação semelhante vem ocorrendo no mundo todo, e em particular em São Paulo, onde um motorista do Uber (serviço diferenciado de transporte de passageiro contratado via apps de smartphones) foi sequestrado, agredido e seu veículo danificado por taxistas tradicionais. Não é apenas o Uber que vem despertando a fúria dos luditas e sabots contemporâneos. Dois outros serviços de grande aceitação mundial entraram na mira dos agentes envolvidos com as velhas práticas. Um é o Netflix, que disponibiliza via streaming filmes e séries a baixo custo; o outro é o WhatsApp, aplicativo que faz chamadas de voz via internet a custo zero. Alegadamente, os três serviços citados não apenas ameaçam interesses privados estabelecidos, mas também contrariam a legislação vigente. Para os representantes dos taxistas, o Uber é um "táxi pirata"; para uma grande empresa de telefonia móvel, o WhatsApp é "pirataria no pior sentido". Já para os canais de TV por assinatura, o Netflix é o "Uber do audiovisual". A esse coro uniu-se semana passada o ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, ao afirmar que o Netflix e o WhatsApp estão operando "à margem da lei". O ministro disse ainda que "esses serviços captam riquezas de dentro do país para fora" e que é preciso debater a "assimetria regulatória". Como agente público, o ministro deveria saber que a História tem demonstrado fartamente que a inovação tecnológica gera conflitos e destrói postos de trabalho, mas que, ao longo do tempo, cria empregos e gera riquezas em maior proporção. A informática é o exemplo mais evidente deste fenômeno. Se destruiu empregos de datilógrafos, desenhistas, escriturários e secretárias, gerou novas atividades como digitadores, programadores e técnicos. No cômputo final, a criação líquida de empregos foi amplamente positiva, e a renda média dos setores envolvidos aumentou significativamente. É importante reconhecer que, em geral, a inovação tecnológica não encontra guarida nas normas vigentes. Se fosse diferente, não seria inovação. Por outro lado, ela tem sido o motor do desenvolvimento econômico moderno. A regulamentação sucede às atividades inovadoras. Isso é normal. São ociosos os argumentos no sentido de que os serviços são ilegais, ou que configuram concorrência desleal. É preciso reconhecer o estrondoso sucesso dessas iniciativas. E que o consumidor obtém vantagens duradouras e inequívocas. Impedir a continuidade dessas atividades seria tão absurdo como proibir o correio eletrônico para preservar as vantagens monopolísticas dos Correios. O fato é que as empresas e setores tradicionais que perderam terreno para o Uber, Netflix e WhatsApp deveriam ter deixado a zona de conforto nas quais se encastelaram. Deveriam ter investido em produtos mais eficientes, qualificados e de menor custo para seus clientes. É preciso uma abordagem aberta para enfrentar tais questões. Até porque são irreversíveis. Vieram para ficar, e o caminho sensato é a incorporação das mesmas nos marcos regulatórios vigentes. Tentar impedir que sobrevivam é dar murro em ponta de faca. Os atuais luditas e sabots só têm a perder se seguirem a linha do confronto, porque se trata de um caminho sem volta, por mais que possam se sentir injustiçados. Empresas e setores tradicionais que perderam terreno para o Uber, Netflix e WhatsApp deveriam ter deixado a zona de conforto em que se encastelaram.
Publicado no Jornal O Globo: 13/09/2015
Publicado no Jornal A Gazeta Regional (Caçapava - SP): 16/10/2015
Publicado na Revista AMais: Novembro de 2015