Inúmeras pesquisas de opinião pública demonstraram que os contribuintes brasileiros atribuem à CPMF a virtude de ser um tributo de difícil sonegação. É considerada universal e democrática. Todos pagam, até a economia informal. Até mesmo os contraventores e criminosos dificilmente encontram meios de burlar a arrecadação desse tributo. Trata-se de uma reconhecida vantagem da CPMF sobre outras formas declaratórias de tributação.
Na realidade, ficam de fora dessa forma de exação fiscal apenas as pequenas transações, mais facilmente liquidadas sem a interveniência do sistema bancário. Contudo o valor total dessas transações é pequeno e tende a diminuir com a globalização e com a inexorável tendência mundial de substituição da moeda manual pelas inúmeras formas de moeda escritural, desde os ultrapassados cheques de papel até as transações eletrônicas via internet.
Nesse sentido, a notícia veiculada no último dia 20 pelo "Valor Econômico" de que a Receita Federal vem autuando pesadamente os bancos por suspeita de sonegação da CPMF causou surpresa e indignação.
As primeiras suspeitas de evasão da CPMF vieram a público em 2000. O Banco Central detectou transações efetuadas por bancos em favor de seus grandes correntistas. O estratagema de "economia tributária" envolvia a liqüidação de pagamentos em nome dos seus clientes preferenciais por meio de contas correntes mantidas com corretoras e distribuidoras de valores, cuja movimentação bancária é isenta da cobrança de CPMF.
Agora, a Receita Federal revela que autuou grandes bancos por falta de recolhimento da CPMF em operações com cheques administrativos endossáveis emitidos em nome de clientes, que os utilizavam para a realização de pagamentos sem a cobrança da CPMF. Segundo a Receita Federal, o valor das autuações da CPMF atingiu mais de R$ 1 bilhão em 2003, o que representou cerca de 26% do total das autuações fiscais contra os bancos.
A notícia é chocante e, ao mesmo tempo, esclarecedora.
Choca por desvendar os tortuosos desígnios de alguns bancos que não hesitam em burlar o espírito de nossa legislação tributária, ainda que possam acreditar que suas ações se revestiam da mais absoluta legalidade. É claro que seus atos podem até ser legais, mas jamais poderiam ser considerados legítimos.
Ao mesmo tempo, a notícia dos desvios praticados pelos bancos esclarece a opinião pública acerca dos riscos envolvidos na adoção de uma sistemática tributária inovadora, como o imposto sobre movimentação financeira, sem as cautelas e os cuidados que deveriam ter sido adotados quando de sua implantação pioneira, em meados da década passada.
A CPMF é um tributo praticamente insonegável para o contribuinte comum. No entanto sua operacionalização é efetuada pelo sistema bancário. É possível afirmar que o tributo é de difícil evasão, a menos que exista má-fé e conivência dos bancos.
O sistema bancário é o operador e o fiel depositário da CPMF. Nesse sentido, ao praticar atos que lesem o interesse público deve ser responsabilizado.
Mas o que efetivamente chama a atenção é o fato de que, desde sua implantação inicial em meados da década de 90, pouca ou nenhuma atenção foi dispensada pela Receita Federal na fiscalização dos bancos no tocante ao recolhimento da CPMF. Apenas nos últimos três anos é que se passou a fiscalizá-los com maior rigor, após as revelações do Banco Central sobre as fraudes que vinham sendo praticadas.
A CPMF vem sendo recolhida desde 1997 sem que o governo tenha tido, com os bancos, o mesmo rigor na fiscalização que vem tendo com os contribuintes dos demais setores da atividade econômica. O prejuízo pode ter sido incalculável. Por outro lado, é natural que surjam dúvidas até mesmo sobre a correção das transferências aos cofres públicos dos valores debitados nas contas correntes dos depositantes no passado.
A CPMF revelou ser um tributo eficiente, de baixo custo, robusto e resistente a fraudes em sua mecânica operacional regular. Contudo não se pode esperar que seja igualmente resistente às investidas maliciosas de seus próprios operadores. Trata-se de um tributo que torna desnecessária a manutenção do gigantesco aparato fiscalizatório usualmente associado aos tributos declaratórios como o Imposto de Renda e o ICMS, mas não pode dispensar um aparato de auditoria nos meandros da engenharia financeira e da informática bancária.
De fato, a CPMF não necessita de um único fiscal para auditar o contribuinte. Mas não pode prescindir de um sistema de fiscalização eficiente e especializado quando se trata de auditar os próprios arrecadadores.
MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.