A análise das perspectivas de política econômica no Brasil depende de cuidadosa observação do endividamento do governo.
Estima-se que a dívida pública global (interna e externa) represente hoje aproximadamente Cr$ 850 trilhões, ou 65% do PIB. O que preocupa, contudo, não é tanto a atual magnitude relativa, mas sim suas aceleradas taxas de crescimento.
A relação entre o valor dos títulos públicos da União em poder do mercado e o PIB aumentou, de menos de 5% em 1980, para 20% em 1985. Assim, enquanto no período o PIB nominal aumentou 75 vezes, a dívida mobiliária tornou-se 302 vezes maior. Nota-se ainda que o prazo médio de vencimento, que em setembro de 1983 era de 26 meses, caiu, em setembro de 1985, para tão somente 11,5 meses.
O déficit operacional (que exclui as correções monetária e cambial) atingiu cerca de 5,2% do PIB em 1981, e 6,2% em 1982. Com a suspensão dos fluxos de recursos externos, o déficit operacional foi contido em 1,9% em 1983, e em 2% em 1984, mas estima-se que chegue a 4% em 1985.
Com relação ao conceito de caixa, o déficit de 1985 inicialmente estimado em Cr$ 109 trilhões foi reajustado para Cr$ 55 trilhões com as medidas adotadas pelo "pacote de julho", que entre outras providências propunha a redução de despesas em Cr$ 20 trilhões (sendo Cr$ 15 trilhões a nível de empresas estatais), elevação de receitas tributárias em Cr$ 21 trilhões, e um "float" esperado de Cr$ 12 trilhões. Esperava-se que, desta forma, o déficit de caixa fosse reduzido para aproximadamente Cr$ 55 trilhões. A evolução dos números mostra, contudo, que o mesmo atingiu cerca de Cr$ 75 trilhões.
Para o ano de 1986, as previsões referentes à evolução do déficit público brasileiro são pouco animadoras. A primeira previsão situava o déficit de caixa em Cr$ 211 trilhões, valor hoje reestimado para cerca de Cr$ 250 trilhões.
As providências incluídas no "programa de mudanças", apresentado em novembro último, mostram que o governo teve de aumentar, mais uma vez, as receitas fiscais. A elevação da arrecadação de impostos em Cr$ 80 trilhões representa um aumento de 30% nas receitas de IPI e IR. Somando-se a esta cifra um corte de gastos de Cr$ 8 trilhões, a eliminação do déficit das estatais em Cr$ 25 trilhões, a redução dos encargos financeiros na rolagem da dívida pública em Cr$ 35 trilhões (decorrentes da esperada redução da taxa de juros), a concretização de planos de privatização no montante de Cr$ 15 trilhões, e um "float" de Cr$ 30 trilhões, o "programa de mudanças" obteria a redução do déficit de caixa de 1986 para cerca de Cr$ 77 trilhões (Cr$ 20 trilhões do acréscimo de receitas seriam repassados aos Estados e Municípios). Vale lembrar, contudo, que com exceção do aumento de arrecadação tributária, todos os demais itens são meras hipóteses que, dependendo das contingências, poderão não ser concretizados em sua totalidade.
A gravidade da situação orçamentária brasileira é perturbadora, e torna-se ainda mais evidente ao se levar em consideração a rigidez e as dificuldades encontradas pelo setor público para combatê-la.
O Tesouro Nacional já vem obtendo superávits que são transferidos para as autoridades monetárias e empresas estatais. As contas da execução financeira da União mostram que até setembro último havia um superávit acumulado de mais de Cr$ 20 trilhões, ou 25% das receitas totais de Cr$ 78,5 trilhões. Embora não deva haver limite para os esforços de contenção de despesas e de aumento da eficiência administrativa, é forçoso reconhecer que alguns resultados positivos já foram obtidos, e que a prestação de serviços públicos essenciais não pode ser comprometida; pelo contrário, avolumam-se pressões no sentido de elevar os investimentos do governo para dar suporte à vigorosa retomada do crescimento econômico observada desde 1984.
Pelo lado das empresas estatais, a questão torna-se mais complicada, prevendo-se que terão gerado um déficit superior a Cr$ 40 trilhões durante o ano de 1985.
O fator mais diretamente responsável pelas dificuldades orçamentárias das empresas públicas acha-se nos custos de rolagem da dívida. O quadro a seguir mostra a evolução dos gastos reais das empresas estatais no período 1980/86:
Observa-se que os investimentos foram sensivelmente reduzidos, mas que os encargos financeiros mais do que triplicaram, exercendo considerável pressão nos demais componentes de gastos.
Aliás, a dimensão financeira do déficit é sentida no setor público como um todo, e não somente a nível das estatais. Dos dispêndios totais do governo, os encargos financeiros passaram de 12% em 1983, para 19% em 1985, atingindo mais de Cr$ 100 trilhões. Estima-se que no ano de 1986 venham a alcançar a cifra de Cr$ 250 trilhões, ou cerca de 2/3 do total das receitas tributárias da União.
O emaranhamento é tão grave que as perspectivas de solução tornam-se bastante fugazes.
O governo vem tentando atuar sobre duas variáveis. A primeira é a elevação da receita, seja pela via de aumentos de tributos (pacotes de julho e novembro) seja pela recomposição das tarifas dos serviços públicos, como previsto no orçamento das estatais. A segunda é pela redução de juros, e consequente queda nos encargos financeiros da dívida. Ambas, contudo, são formas de combate aos desequilíbrios fiscais que tendem a se esgotar com o aumento da frequência com que são usadas.
Não havendo contratempos, o déficit de caixa do setor público em 1986 possivelmente possa ser comprimido para menos de 1% do PIB; é forçoso reconhecer, contudo, que a inflação tenderá a aumentar, e que as pressões para a elevação dos juros não foram contidas. Assim, eventuais imprevistos poderão facilmente comprometer o sucesso da estratégia oficial, criando condições para a adoção de um plano alternativo de reforma monetária e de rígidos esquemas de controle de preços e de rendas.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE é doutor em Economia pela Universidade de Harvard, chefe do Departamento de Economia da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, e superintendente de Pesquisa e Análise da F. Barretto Corretora de Câmbio e Títulos Ltda.