O economista da FGV-SP Marcos Cintra e a advogada e professora do GVlaw Elidie Palma Bifano discutem sobre o uso de instrumentos tributários para fomentar o progresso tecnológico.
É legítimo fornecer isenções fiscais às empresas para que elas modernizem sua produção, deem um passo rumo à inovação tecnológica e se tornem mais competitivas? O tema é familiar para estudiosos da economia brasileira. Para avaliar os prós e contras dessa política, convidamos os professores Marcos Cintra, economista e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas, e Elidie Palma Bifano, advogada e consultora da PriceWaterhouse Coopers.
Radicalmente contra o uso de incentivos fiscais para melhorar o progresso tecnológico no Brasil, Marcos Cintra apresenta uma visão sóbria. Cabe ao sistema tributário, segundo ele, arrecadar e gastar de maneira eficiente, sem onerar demasiadamente a sociedade. Em outras palavras, qualquer política que vise ao desenvolvimento tecnológico deve ser aplicada com recursos do orçamento, não com renúncia de arrecadação.
Visão oposta e elogiosa da Lei de Inovação Tecnológica brasileira, promulgada em 2004, é defendida por Elidie Palma Bifano, professora do GVlaw. Citando diversos pontos da legislação recente, Elidie afirma que o Brasil pode começar a se inserir de maneira positiva nesse debate. Empresários são incentivados a contratar mais cientistas e professores, a importar equipamentos mais modernos e produtivos, a aproveitar as diversas modalidades de isenção fiscal que a lei permite. Isenção que, como bem ressalva a professora, não pode ser confundida com simples renúncia fiscal sem contrapartidas. Avaliar os projetos inovadores implementados pelas empresas é crucial para que a lei seja aproveitada da maneira correta. Acompanhe, nas próximas páginas, mais argumentos dos especialistas.
"Inovação e desenvolvimento tecnológico são fatores básicos para a competitividade econômica de qualquer nação. A importação é uma das formas que um país pode adotar para agregar novas tecnologias ao seu sistema produtivo. Técnicas mais eficientes de produção originadas em um determinado país podem ser adotadas por outra economia para ganhar mercado num primeiro momento e, em seguida, desenvolver tecnologia própria. É o que os Tigres Asiáticos sempre fizeram.
O governo deve estimular, sem dúvida alguma, a pesquisa tecnológica. Até porque muitas técnicas mais avançadas não são patenteáveis. São conhecimentos que acabam se disseminando. A área agrícola é um exemplo típico. A pesquisa tem que ser feita pelo governo, uma vez que as unidades de produção são pequenas, difusas, fragmentadas.
É importante que o governo estimule, execute diretamente a pesquisa e mantenha convênios com universidades. Porém, não deve usar incentivos fiscais para induzir o progresso tecnológico. É um péssimo instrumento não só na área de pesquisa, mas para estimular qualquer setor. Lembro o caso da Itália, experiência copiada no Brasil por Celso Furtado no final da década de 50, com a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Foram fracassos absolutos. Nosso Nordeste se tornou tão pouco industrializado quanto o sul da Itália.
Esses programas isentavam de tributos federais, estaduais e, por vezes, municipais, para que a atividade econômica se instalasse em bases territoriais predefinidas. Apontava-se uma região no sul da Itália, por exemplo, para que fosse industrializada. Não haveria tributação ali durante um determinado período. Os governos deixaram de arrecadar muito com isso. Outro grande problema foi a falta de foco. Criaram-se estruturas burocráticas para selecionar projetos que nem sempre eram compatíveis com aquela região. Eram artificiais, estimulados apenas pelo incentivo fiscal e não pela vocação econômica regional. Roberto Campos considerava um absurdo estimular a industrialização no Nordeste por meio de renúncia fiscal e depois esse produto voltar para ser consumido aqui em São Paulo.
A isenção fiscal é um péssimo instrumento. O governo tem que usar outros estímulos para incentivar a inovação tecnológica: políticas de créditos, recursos para pesquisa e infraestrutura são mecanismos mais eficientes para que a região identifique suas vocações econômicas e atraia investimentos privados. O governo precisa dar competitividade sistêmica a uma determinada região e não estímulos artificiais.
Infelizmente, o tema da isenção fiscal para o desenvolvimento tecnológico está presente nas discussões da reforma tributária. A concepção vigente no Brasil é a de que o sistema tributário é uma forma de favorecer determinados setores econômicos. Antigamente não havia guerra fiscal porque ninguém imaginava a possibilidade de colocar uma montadora de automóveis no Nordeste. Não havia condição de instalar algo assim lá, nem oferecendo incentivo fiscal forte. Eram economias mais regionalizadas. Mas a homogeneização do espaço econômico tem ocorrido. As desigualdades diminuíram. Dentro desse espaço mais homogêneo, a guerra fiscal começa a fazer diferença. Uma isenção de 15% de tributos no valor de um produto pode ser importante se há infraestrutura adequada no local. Antes era possível dar uma isenção de 50% de imposto e isso não tinha reflexos concretos. A eficácia desse instrumento hoje é maior, mas pode gerar um padrão de muito ineficiente, pois é artificial. Esse ativismo econômico não deveria ser praticado no Brasil. Além disso, a isenção fiscal é altamente vulnerável a fraudes e abusos e sempre há o risco de investir em determinados segmentos que, uma vez cessado o benefício, perdem a razão de existir, não conseguem sobreviver.
O sistema tributário não deve ser usado para atingir objetivos extrafiscais, mas para cumprir sua atividade: gerar recursos para o governo desenvolver todas as suas políticas públicas. É preciso resgatar a função arrecadatória do sistema tributário, uma vez que os impostos estão sendo utilizados para tudo. A estrutura tributária precisa ter como principal objetivo arrecadar bem, da maneira mais eficiente possível. Uma vez arrecadados os recursos, o governo pode praticar todas as suas prioridades. Quer fazer política de desenvolvimento regional, industrial ou tecnológico? Ótimo. Mas canalize os recursos arrecadados para estimular pesquisa e fazer convênios com universidades. É mais eficiente do que não oferecer infraestrutura adequada e perder receita por meio de renúncia fiscal.
Marcos Cintra é doutor em Economia pela Universidade Harvard e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.
Vivemos um momento no qual as empresas procuram reduzir seus custos ao máximo para ganhar competitividade. Como esse tem sido o tom nos últimos anos, o principal mecanismo para competir melhor, além de diminuir gastos, é aderir à inovação tecnológica. A empresa que não se ajusta a isso perde mercado.
A Lei 10.973 sobre inovação tecnológica, editada no Brasil em 2004, acompanha essa corrente. Considerando o papel da política fiscal, há duas maneiras de incentivar a inovação: oferecendo renúncias fiscais gerais ou propondo isenções tributárias com relação a aspectos pontuais e com bom acompanhamento de projetos. O Brasil passou por períodos extensos de renúncia fiscal. Nem sempre esse instrumento é o mais adequado, porque implica menor arrecadação. A partir da década de 60, houve diversos incentivos para que as empresas exportassem e o país se inserisse no cenário internacional. Foram aplicadas renúncias fiscais nos níveis federal, estadual e municipal. A ideia era que, com a isenção, houvesse o crescimento de certas regiões e do país como um todo. Mas esse tipo de incentivo não trouxe os resultados esperados.
O Brasil começou a abandonar essa política no governo Collor. Ao longo dos últimos anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal também foi um passo importante. Se o governo quer conceder uma isenção, precisa criar fontes adequadas. Sob pena de causar transtornos, não pode simplesmente reduzir a arrecadação. Também não é permitido aumentar um tributo para compensar a isenção: são necessárias fontes específicas para cobrir. A recente Lei de Inovação Tecnológica incentiva as empresas a se modernizarem. Por exemplo, a empresa pode ter isenção na importação de certos bens e equipamentos. Além disso, há isenção para a aquisição de bens e equipamentos nacionais destinados à atividade da companhia.
A lei também prevê, por exemplo, que a empresa possa comprar um equipamento no exterior e gozar de isenção na importação. Prevê ainda a possibilidade de depreciar aceleradamente um equipamento. Há algumas modalidades interessantes de incentivo ao desenvolvimento de novos projetos, facilitando a contratação de cientistas e professores. Diferente de simplesmente conceder uma isenção, é necessário que esteja vinculada a um projeto consistente. Segundo a Lei de Inovação Tecnológica, um projeto consistente é aquele que traz melhorias incrementais. Melhoria incremental é o que a empresa pode fazer para tornar seu processo ou seu produto mais competitivo no mercado. Nesse sentido, a política fiscal pode ter muito a oferecer.
Os mecanismos tributários podem e devem ser usados para incentivar a inovação tecnológica e a política industrial. A isenção não deve ser considerada apenas como dispensa de pagamento de tributo, mas sim algo relacionado a um fim específico. Todo questionamento em relação às isenções como eram feitas antes nos levou a condicioná-las a resultados e a acompanhar de perto os projetos. A isenção precisa ser bem dimensionada. A simples renúncia fiscal é muito arriscada, pois pode representar um benefício que nem sempre retorna.
Nesse sentido, a Lei de Inovação Tecnológica propõe isenções adequadas. Todas exigem que o beneficiado mostre melhorias no produto ou no processo. É necessário prestar contas e mostrar o destino dado ao dinheiro, sob pena de pagar o imposto de modo retroativo.
Como já dito, as isenções fiscais são destinadas à modernização do processo ou do produto. Se uma fábrica de cosméticos continua produzindo o mesmo batom, mas agora com uma máquina nova que produz mais unidades por hora, gasta menos dinheiro e garante mais competitividade nesse nicho de mercado, isso representa uma melhoria incremental no processo. Mas também é possível fabricar um batom que dura 24 horas nos lábios, em vez de apenas algumas horas. Essa é uma melhoria no produto. Ambas melhorias, seja no produto ou no processo, podem representar inovação tecnológica, desde que haja o intuito de ganhar mercado.
O incentivo à participação de escolas, professores e cientistas é outro passo importante para modernizar as companhias. Em países mais desenvolvidos, algumas empresas nem têm departamento de pesquisa. Elas contratam universidades para realizar a pesquisa e desenvolver o produto, pois o pessoal da universidade está mais capacitado para isso. Isso minimiza custos, pois se a empresa tiver que reproduzir em seu laboratório o que a universidade já fez, gastará mais. A Lei de Inovação Tecnológica permite deduzir esses custos com professores e cientistas. É uma maneira de incentivar a busca por pessoas capacitadas.
A Lei de Inovação Tecnológica foi sancionada em 2004 e é relativamente nova. Levará algum tempo para começar a funcionar, pois parece que alguns setores do governo federal ainda não estão devidamente preparados. Uma montadora, por exemplo, sempre aprimora seus carros. Qualquer mudança tem dois objetivos: ter um produto que possa ser produzido indefinidamente e que seja funcional para quem o usa. Uma mudança no trinco da porta pode ser meramente estética ou pode buscar tornar o produto melhor. Talvez um ministério diga que a mudança estética não é modernização. Mas um especialista em design automobilístico argumentaria que toda mudança é feita como uma melhoria incremental no carro. Se isso for verdade, um incentivo é previsto na Lei de Inovação Tecnológica. No entanto, se a montadora consultar o governo para obter o benefício nesse caso, há um grande risco de ele ser rejeitado.
O ministério pode responder que se trata de uma mudança estética e não de uma melhoria incremental no sentido que a lei prevê. Ou seja, o governo não entendeu o significado maior da inovação tecnológica. Nenhum empresário muda um produto que funciona bem por simples capricho. Ele muda porque há uma razão objetiva, como melhorar o trinco da porta para proporcionar mais segurança, impedindo que a criança o abra. Há órgãos ainda despreparados para regulamentar questões de inovação tecnológica. Não se pode permitir a má fé nem que isenções ilegítimas sejam fornecidas, mas podemos exigir uma predisposição a examinar as mudanças com uma perspectiva científica.
Elidie Palma Bifano é advogada, doutoranda em Direito Tributário pela PUC-SP e professora do GVlaw.