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  • Marcos Cintra

A urgência de redesenhar o SFH

O SFH existe há cerca de 25 anos e foi responsável pela construção de quatro e meio milhões de unidades residenciais. Foi um notável esforço no sentido de gerar um sistema de captação de recursos para financiamentos habitacionais, apesar da forte aceleração inflacionária ocorrida em todo aquele período. De certa forma, contribuiu, ainda, para gerar um eficiente sistema de poupança popular — as cadernetas de poupança — responsável hoje por cerca de 30% do total dos ativos financeiros não-monetários do País.


No entanto, a crise de moradia está mais séria do que nunca, e o potencial do SFH em solucioná-la acha-se cada vez mais reduzido em função das profundas contradições operacionais e financeiras da política habitacional brasileira. Existe uma tendência cada vez mais evidente de se considerar o SFH como uma questão financeira a ser solucionada a nível de regulamentação do Banco Central. Esta é uma faceta da questão; mas há outros componentes igualmente importantes.


Aqueles que abordam o problema sob o prisma do planejamento urbanístico tendem a ignorar suas profundas repercussões econômico-financeiras. Existem, finalmente, os que julgam poder resolver a crise habitacional no Brasil simplesmente pelo lado da mobilização social — dos movimentos populares — independentemente de considerações sobre como custear as realizações reivindicadas.


Em realidade, o déficit habitacional no Brasil é um problema econômico, financeiro, urbanístico e social. É um desafio complexo. Sua importância econômica acha-se no impacto que o setor da construção civil residencial possui tanto no nível ocupacional quanto nos fortes multiplicadores de renda e emprego a partir do setor de materiais de construção; sua importância financeira fica evidenciada pela contribuição que a poupança habitacional representa na taxa global de poupança em todos os países desenvolvidos do mundo; do ponto de vista urbanístico, seu significado é evidente não apenas pela alta e precoce taxa de urbanização observada no Brasil, mas também pelas evidentes dificuldades em se prover os serviços urbanos essenciais; e finalmente, a significação social da questão da moradia salta aos olhos mediante a simples e dolorosa observação do número de favelados e encortiçados que povoam os centros urbanos brasileiros.


Assim, qualquer análise séria do problema habitacional brasileiro exige a integração dessas quatro visões do problema, numa proposta de solução que contemple o desafio em toda sua complexidade. Em outras ocasiões já tive oportunidade de discorrer sobre importantes facetas da política habitacional do Brasil sob o ângulo do funcionamento do Sistema Financeiro da Habitação. A tônica das sugestões que apresentei ia na direção do aperfeiçoamento dos mecanismos financeiros utilizados — que deveriam garantir o retorno integral dos recursos avançados aos mutuários, sem resíduos — e também da certeza de que os recursos do SFH deveriam ser inteiramente canalizados para as faixas populacionais carentes; seriam criados bancos hipotecários para o atendimento à classe média.


Agora gostaria de apresentar algumas sugestões no tocante ao aspecto urbanístico e social da questão habitacional. De certa forma, a crise econômica dos anos 80 no Brasil inviabilizou o SFH pelo estrangulamento do poder aquisitivo da população alvo em programas habitacionais. Caso o sistema não seja urgentemente redesenhado, a tendência inexorável será a elitização da política habitacional. Os recursos disponíveis tenderão a ser aplicados nas chamadas "faixas-livres", não vinculadas diretamente à construção residencial, ou então, serão concentrados no atendimento à população de renda média e alta. É preciso evitar que isso ocorra, pois seria o desvirtuamento do programa.


Uma vez que a renda familiar da população-alvo do SFH não está sob seu controle, resta apenas a alternativa da redução do valor dos financiamentos. Paralelamente, o imóvel a ser financiado precisa ter seu valor reduzido. Não se trata, como muitos poderiam imaginar, de degradar o serviço habitacional. Em todas as grandes cidades do mundo, a área das unidades habitacionais sofre reduções importantes para viabilizar sua aquisição. Em Tóquio, como exemplo eloquente, a área residencial de famílias de classe média já se aproxima de 30m2. Evidentemente, esta redução na área privativa exige investimentos em áreas de uso comum, mas, de qualquer forma, a tendência é de drástica queda no tamanho dos imóveis.


Igualmente importantes, e neste aspecto o Brasil possui características próprias, é a necessidade do SFH incorporar em sua linha de atuação o binômio lote urbanizado/autoconstrução. Desta forma, seria possível um sensível barateamento da unidade residencial e um ataque frontal à questão do favelamento nas grandes cidades do País.


Estas duas alterações exigem uma outra postura do aparato burocrático estatal. Torna-se necessário o reconhecimento de que a elitização das exigências urbanísticas em nada contribuíram para melhorar o nível dos serviços habitacionais brasileiros. Pelo contrário, apenas agravaram o déficit habitacional, que hoje ultrapassa doze milhões de unidades.


As modificações de postura acima mencionadas ainda exigirão que o atual modelo de urbanização privada, implícito na legislação urbanística e que transfere ao incorporador imobiliário os custos da infraestrutura urbana, seja flexibilizado. Ao tirar o loteador deste circuito, estaríamos eliminando um dos fatores de conflito e de altos custos desses serviços, que acabam recaindo sobre o adquirente do imóvel. Em seu lugar, o poder público geraria mecanismos de financiamento — como contribuições de melhoria e planos comunitários — que, sob orientação das autoridades municipais, proveem estes serviços com maior eficiência e menores custos.


Finalmente, este novo modelo de urbanização não poderia prescindir de uma atuação firme do Estado no sentido de implantar uma efetiva política de desconcentração da atividade produtiva, e consequentemente, das oportunidades de emprego. Ao gerar cidades menos densas, há que evitar os inconvenientes dos excessivos deslocamentos de trabalhadores, bem como adaptar as exigências de infraestrutura urbana e uma taxa de utilização menos intensa. Como se vê, a necessária reestruturação da política habitacional brasileira é profunda e alcança diversas áreas de atuação do Estado. Estas diretrizes seriam capazes de recuperar o potencial de prestação de serviços do SFH; também dariam novo ímpeto à imensa estrutura financeira desenvolvida ao seu redor, que, de outra forma, acabaria descaracterizada, sem falar, obviamente, do alto conteúdo social desta reorientação de rumos.

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