Seria interessante indagar porque a ideia da reforma agrária é tão frequentemente trazida à discussão nas sociedades capitalistas. Inicialmente é preciso lembrar que a reorganização da estrutura fundiária tem como principal característica o esforço de estender a posse e uso da terra a um maior número de pessoas, e portanto, tende a reforçar a instituição da propriedade privada. Evidentemente, o processo ocorre em detrimento dos interesses específicos de certos segmentos sociais — o que explica a tentativa por parte daqueles que se sentem prejudicados, de dar-lhe conotação de ameaça ao sistema econômico constituído — mas, se bem sucedida, a reforma agrária tem como resultado final o fortalecimento das pequenas e médias propriedades agrícolas, uma espécie de lei "antitrust" rural. Destarte, seria errôneo considerá-la, necessariamente, uma ameaça, ou uma reação, ao sistema capitalista e à instituição da propriedade privada.
Outro ponto que surge no debate da reforma fundiária é a questão da equidade e da justiça social. O que é intrigante, contudo, é a assimetria no tratamento do problema comparando-se as políticas adotadas no setor rural face aos demais. E pouco discutível, pois acha-se absolutamente consagrado nas economias capitalistas, que justiça social e melhor distribuição de renda podem ser obtidos por intermédio de medidas de caráter fiscal, principalmente por meio de impostos progressivos incidentes sobre a renda ou sobre o valor da propriedade. Assim, a redistribuição dos bens de produção na indústria, no comércio e nos serviços não são reivindicados como tentativas de aperfeiçoamento do sistema capitalista. No setor agrícola, contudo, tenta-se não somente a redistribuição da renda, como também da terra, que é um meio de produção. A explicação para tal diferença de tratamento pode ser encontrada na concepção de que a terra é um "bem não-produzido". Tal concepção, de que são exemplas as palavras de São Paulo 2° "a terra é um dom de Deus", justifica que se impeça alguns poucos de se apoderarem de um patrimônio comum, e que se garantam meios de uso e posse da terra para todos. Nas sociedades modernas a concepção da terra como um "bem não-produzido" é anacrônica, uma reminiscência de origem atávica. A terra é um meio de produção cujas características econômicas não a diferenciam dos demais, exigindo que nela se façam investimentos e melhorias. Contudo, ao ser deixada ociosa, sem utilização produtiva, torna-se então justificável, e mesmo necessária, a intervenção governamental para garantia de sua função econômica.
A discussão sobre o projeto de reforma agrária, embora limitada pela exiguidade de tempo imposta pelo governo — o início de sua implantação está previsto para agosto próximo — já produziu conclusões sobre as quais há ampla concordância. A primeira — o projeto foi mal lançado. Seus idealizadores e eventuais executores falharam em apresentar à sociedade brasileira um projeto factível, capaz de aglutinar o apoio político que tal tarefa exigiria. O prazo para discussão é curto, e o projeto foi mantido em sigilo — poucos foram consultados previamente até sua espalhafatosa apresentação em Brasília no dia 27 último — dando margem à conclusão de que o governo não parece ter o real intento de incorporar críticas e sugestões ao texto anunciado. Criou-se, portanto, um desnecessário clima de apreensões no meio rural, com danosos reflexos nas perspectivas da produção agropecuária.
Igualmente polêmicas são as propostas de atuação prioritária em áreas de conflito social (que quando presentes devem ser tratadas exclusivamente pelo processo judicial), bem como a intenção de atuar-se nas áreas de maior concentração populacional rural, o que na grande maioria dos casos, coincidirá com as regiões de agricultura mais moderna e produtiva. A segunda conclusão refere-se à propalada identificação entre o atual projeto de reforma agrária e o Estatuto da Terra. A leitura daquele texto, publicado em 1964, deixa claro que eram previstas várias formas de aprimoramento do setor agropecuário brasileiro, tais como a colonização, a assistência técnica, políticas de desenvolvimento rural, e, principalmente, a taxação progressiva da propriedade fundiária; e dentre tais medidas, colocou-se também a desapropriação. Esta última, segundo a mensagem que acompanhava o Estatuto ao Congresso, seria utilizada "se e quando necessário", ao passo que o atual projeto vê nesta forma de intervenção sua principal estratégia operacional. Não procede, portanto a afirmativa de que se trata da mera aplicação de legislação pré-existente, mas antes, de uma substancial alteração nos meios de ação propostos pelo Estatuto.
A terceira conclusão é de que o projeto não foi financeiramente dimensionado; portanto sua aplicação, da forma proposta, tornar-se-á uma remota possibilidade. É leviano afirmar-se, como feito pelo governo, que milhões de pessoas serão assentadas, em propriedades de tamanho médio de 35 hectares, principalmente pela via da desapropriação, ao custo unitário de US$ 3.500 por família. Ou o assentamento se dará nas regiões de fronteira, onde o custo de desapropriação da terra é reduzido — no entanto os investimentos serão excessivamente elevados — ou então, ocorrerá em regiões onde já existe a infraestrutura de produção — mas o custo da terra excederá a previsão de recursos. Em ambos os casos, o projeto de reforma agrária poderá ser inviabilizado. Torna-se patente, portanto, que respeitados os mecanismos legais existentes, o dimensionamento financeiro do projeto não permitirá sua implementação.
Nota-se, assim, que o projeto de reforma agrária apresentado pelo ministro da Reforma e Desenvolvimento Agrário é de difícil execução. Ademais em pouco contribui para a identificação de linhas de ação que efetivamente tornem possível o aumento da produção, principalmente de gêneros alimentícios para o mercado interno, ou a redução de êxodo rural.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, doutor em Economia pelo Universidade de Harvard (EUA), é professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e consultor econômico da Folha.