Está em tramitação no Senado um projeto de emenda à Constituição que, se aprovado, comprova a fraqueza do caráter cívico dos brasileiros, que tudo aceitam, tudo acomodam, mesmo sendo alvos das mais odiosas injustiças e perversidades.
O Brasil é um país onde impera um tipo imbecil de serenidade que impede que a sociedade adote medidas emergenciais capazes de atenuar os males que a afligem. Essa tolerância torna o brasileiro uma população de seres destituídos de vontade, de sentimento de indignação e, sobretudo, sem capacidade de mudar, de reformar, de melhorar.
Essa tolerância, que, como disse Marquês de Sade, é a virtude dos fracos, tem tornado o Brasil um país de néscios, de indiferentes, de egoístas e de mortos-vivos sem sangue nas veias. Vivemos em uma geleia geral, sem princípios, sem regras, sem destino, em que vale tudo, onde impera a truculência do mais forte na política, na economia, na vida urbana e nas relações pessoais.
O projeto de emenda constitucional n° 12/2006 é mais uma dessas infamantes propostas que revelam desprezo pelos cidadãos. Pelo projeto, a União, os Estados e os municípios poderão "optar, por ato do Poder Executivo", e definir o percentual (mínimo de 3% para Estados e 1,5% para municípios) de suas despesas primárias líquidas que será utilizado no pagamento de precatórios. O pagamento será feito em grande parte mediante leilões, nos quais os desesperados credores, tal qual os gladiadores na Roma Antiga, vão se trucidar mutuamente para receberem frações ínfimas do que lhes é devido.
É evidente que os 3% serão teto, e não piso, dos pagamentos. Algumas contas elementares mostrarão que a grande maioria dos governos que têm precatórios a pagar poderá jamais saldar integralmente as dívidas contraídas, mesmo tendo sofrido condenação pelo Poder Judiciário, sob pena de intervenção, segundo a Constituição.
Se aprovado, o Estado continuará espezinhando os direitos dos cidadãos brasileiros que têm valores a receber do governo; a Carta Magna continuará sendo desrespeitada pelo próprio Poder Judiciário, que tolerantemente não decreta as intervenções; e os políticos continuarão a zombar até mesmo daqueles que têm precatórios alimentares a receber. Os precatórios devidos apenas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios somam cerca de R$ 63 bilhões. Isso dá uma ideia do tamanho do calote. São Paulo, o mais rico - e pretensamente saneado - Estado da Federação, pagou no ano passado precatórios alimentares que deveriam ter sido quitados em 1998.
O Estado esquizofrênico mostra suas duas faces: o mau pagador de um lado e o eficiente agente arrecadador de outro, aprimorando sempre suas garras fiscais, como acaba de fazer com a criação da Super-Receita.
A aprovação da PEC 12/2006 é o calote constitucionalizado. Como diz a Ordem dos Advogados do Brasil, "a PEC viola a coisa julgada, o direito adquirido, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa humana". Vale dizer que os direitos dos credores do governo já foram violentados duas vezes. A primeira, quando foram parcelados em oito vezes (1988); a segunda, em mais dez vezes (2000). E agora mais essa indignidade.
A paciência se aproxima tanto do desespero que só nos resta alertar, como fez o poeta inglês J. Dryden, a tomar "cuidado com a fúria do homem paciente".
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.