No dia seguinte ao decreto-lei 2.283, a Folha perguntou se as medidas eram necessárias para o combate à inflação no Brasil. Após alguma hesitação, em artigo publicado na seção "Correspondências/Debates" no dia 1° de março, respondi que não.
A argumentação foi no sentido de que as condições prévias necessárias para o sucesso do choque heterodoxo não estavam presentes na economia brasileira. O pacote eliminava o componente inercial da inflação, porém pouco contribuía para debelar importantes focos inflacionários estruturais que, em última análise, refletem conflitos distributivos: a persistência do déficit público financiado por emissões de moeda e as constantes reivindicações trabalhistas. Completando a argumentação, foram apontadas as dificuldades e riscos do congelamento de preços: "Se não funcionar, a inflação renascerá na nova moeda; se funcionar a contento, e que é difícil, a inflação poderá ser vencida pela recessão, contrariamente às expectativas de eliminá-la de forma indolor".
Após sessenta dias de vigência, o plano de choque começa a enfrentar suas primeiras dificuldades. O congelamento, como já foi mostrado exaustivamente por muitos, poderá ter efeitos negativos na estrutura produtiva da economia, pois antes do programa os movimentos de preços não estavam sincronizados. Embora vários setores tenham ajustado sua estrutura de preços relativos, o mesmo não ocorre em importantes segmentos, como a pecuária leiteira e a produção de cana-de-açúcar; na indústria, obstáculos ainda existem em vários ramos, particularmente no setor produtivo estatal, onde os preços acham-se bastante defasados; e no comércio, a pequena e média empresa terá de sobreviver recorrendo à clandestinidade fiscal.
Quanto à eficácia do congelamento, as dúvidas persistem. Pleno sucesso só vem ocorrendo no caso dos produtos básicos; os preços dos demais produtos e serviços vêm sofrendo reajustes, como pode ser facilmente constatado pela análise dos levantamentos de preços já divulgados pela imprensa. Os relatórios sobre o cumprimento das metas são animadores. O próprio Plano Cruzado neutralizou parte do acréscimo de receitas esperado a partir da reforma fiscal de dezembro último. O congelamento ocorreu numa fase em que apenas se iniciava a recomposição de preços e tarifas do setor público, impedindo o necessário saneamento das empresas estatais. Pelo lado dos gastos, o governo não parece demonstrar firmeza de intenções na redução de despesas correntes e investimentos.
Os salários ainda não preocupam, mas poderão ser importantes centros de perturbações no futuro, caso a inflação residual não seja zero. A tranquilidade com que o reajuste de salários pelas médias foi aceito decorre, em grande parte, do fato de que a maioria dos assalariados estava com seus salários abaixo da média por ocasião do plano de choque. Além disso, foi comum as empresas não reduzirem os salários nominais daqueles que haviam tido reajuste logo antes do pacote; e finalmente, a drástica redução do desemprego e o crescimento desmesurado da demanda por mão-de-obra em setores como a construção civil, altamente trabalho-intensiva, têm feito com que tanto os salários médios quanto a massa salarial venham se elevando, não obstante a política de congelamento. Estes fatos, conjugados com o crescimento do consumo registrado nos últimos meses, poderão conjurar para o surgimento da inflação em cruzados; neste caso, os rendimentos reais do trabalho serão rapidamente corroídos, e as médias salariais de reajuste automático reivindicadas pelos sindicatos poderão surgir com redobrado vigor.
No momento em que a sociedade, inclusive e principalmente o governo, reconhecer que o processo inflacionário é muito mais complexo do que se deseja acreditar, e que as suas causas estruturais não podem ser efetivamente eliminadas por miraculosos processos neutros e indolores, aí então, deverão ser discutidas e encaminhadas as soluções de base para a crônica inflação brasileira. É uma questão de política econômica, e não deve ser reduzida a regras mecanicistas como as do plano heterodoxo. Estas estão a exigir urgentes medidas complementares, capazes de corrigir os rumos da atual luta antiinflacionária. A principal linha de ação deve ser drástico controle dos gastos públicos, que resultaria na imprescindível contenção da demanda agregada. A alternativa de políticas monetária e tributária restritivas impossibilitariam a necessária retomada dos investimentos no setor privado.