Quem esperava que o grupo de trabalho criado pelo presidente da República, em agosto do ano passado, com o intuito de apresentar sugestões acerca da reformulação do Sistema Financeiro da Habitação, oferecesse reais alternativas deve ter sentido profunda decepção ao ler o relatório final apresentado. O desinteresse geral com que esse documento foi recebido e debatido no mês passado, por ocasião de sua apresentação e discussão formal, é indicativo de que aquela comissão, possivelmente em face do emaranhado de problemas e interesses envolvidos na indústria da construção civil no Brasil, não tenha tido condições de identificar as verdadeiras prioridades para o encaminhamento de soluções para o problema.
O crescimento nos últimos anos das favelas, cortiços e outras formas de sub-habitação tem sido espantoso. Tomando-se São Paulo como exemplo, em 1958, menos de 1,5% da população habitava em favelas; em 1978, mais de 4% da população compunham aquele contingente; e, em 1984, eram mais de 4 milhões de pessoas, ou cerca de 45% da população.
De acordo com o Censo de 1980, o número de sub-habitações no Brasil chegou a quatro milhões de unidades. Tal situação deve ter-se agravado com a crise econômica dos primeiros anos da década de oitenta, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o arrocho salarial e o desemprego ocorreram com maior intensidade.
A magnitude do problema pode ser avaliada pela necessidade de mais de 17 milhões de novas habitações durante a década de 80, sendo que 77% para as famílias de até três salários mínimos de renda familiar.
A atuação do SFH foi desapontadora, não tendo cumprido, nos últimos vinte anos, sua função primordial, qual seja o atendimento à demanda por habitações populares. Ao invés de atuar nesta faixa prioritária, o SFH transformou-se num imenso aparato financeiro, cujos grandes beneficiários têm sido a classe média, as grandes construtoras e os agentes financeiros.
As reformas necessárias na política habitacional brasileira pressupõem a aceitação de algumas premissas básicas.
A primeira é que a política habitacional do governo deve objetivar exclusivamente as famílias de renda até três salários mínimos. Como a capacidade de pagamento destas famílias é limitada, não há como evitar a concessão de subsídios explícitos, fugindo-se assim da expectativa de auto-sustentação financeira que vem caracterizando a atuação do SFH até o momento. Ao mesmo tempo, devido à escassez de recursos, há necessidade de atender-se com o mínimo essencial o maior número possível de famílias carentes de habitação, limitando-se o valor dos financiamentos a não mais de 800 ou 900 OTNs por habitação.
A segunda premissa é a necessidade de separar as atividades desenvolvidas pelo BNH das dos demais agentes financeiros do SFH. O primeiro se consolidaria como um órgão governamental encarregado de planejar e implementar programas habitacionais "strictu sensu" somente na faixa de interesse social; o segundo trabalharia como instituições financeiras privadas, atuando em faixas de renda superiores, com taxas de juros e condições de mercado competitivas.
Por último, e não menos importante, é crucial que as políticas habitacionais do governo sejam pautadas por critérios transparentes e seletivos na alocação de recursos governamentais. Isso significa que os subsídios habitacionais devem ser direcionados de forma clara e eficaz para as famílias de baixa renda que mais precisam, evitando desperdícios e desvios que têm prejudicado a eficácia do SFH.
É inegável que a reformulação do Sistema Financeiro da Habitação é um desafio complexo, mas as crescentes demandas por habitação de interesse social e a necessidade de combater o crescimento das favelas e sub-habitações exigem ação imediata e eficaz. As premissas mencionadas, se adequadamente implementadas, podem orientar uma nova abordagem na política habitacional brasileira, concentrando esforços onde são mais necessários e garantindo o acesso à moradia digna para as famílias de baixa renda.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE é professor do departamento de Economia da Fundação Getulio Vargas (SP), doutor pela Universidade de Harvard (EUA) e consultor econômico da Folha.