O déficit habitacional brasileiro atinge proporções alarmantes. A crescente urbanização, o crescimento populacional e a sub-habitação (favelamento e cortiços) formaram um déficit habitacional que, para ser sanado, exigirá durante a década de 80 a construção de 13,6 milhões de habitações nas cidades e 3,7 milhões nas zonas rurais. Nos primeiros quatro anos da década pouco foi feito para estancar o processo. Ao contrário, a questão agravou-se consideravelmente, com maiores contingentes populacionais em condições de absoluta carência habitacional.
A atuação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), gerido pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), foi desapontadora, não tendo cumprido, nos últimos vinte anos, sua função primordial, que era atenuar o déficit habitacional para as faixas de interesse social. Vale lembrar que 77% das carências habitacionais detectadas situam-se nas famílias de até três salários mínimos de renda mensal. Contudo, menos de 6% do saldo de financiamentos do SFH foi orientado para o atendimento de moradia dessas famílias.
Ademais, o SFH sofreu profundas alterações em sua composição. Os agentes financeiros do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), que em 1972 controlavam recursos 40% superiores aos do BNH, passaram por acelerado processo de hipertrofia, chegando em 1981 a controlar recursos financeiros que ultrapassaram em mais de quatro vezes os do BNH, do que resultou sensível redução nas prioridades sociais da política habitacional brasileira. O BNH, em particular, transformou-se numa gigantesca e diversificada estrutura, fugindo de suas metas inicialmente estabelecidas, atuando intensamente em áreas de responsabilidade de administração direta, como saneamento, infraestrutura e planejamento urbano e comunitário, transporte, desenvolvimento urbano e outras áreas afins.
Reduziu-se, assim, sua capacidade de atuação na área habitacional "stricto sensu". E o SFH, em vez de beneficiar a população carente de moradias, transformou-se num aparato cujos grandes beneficiários têm sido a classe média, compradora de imóveis pelo SFH, as grandes construtoras e, principalmente, os agentes financeiros.
Ademais, o SFH acha-se apoiado em bases instáveis e tecnicamente inadequadas às altas taxas de inflação observadas na economia brasileira. A defasagem entre os diferentes índices aplicados nos reajustes das prestações e dos saldos devedores, bem como a defasagem nos períodos de correções, deixará resíduos sem cobertura de tal magnitude que o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS) não terá a mínima capacidade de cobri-los, legando à sociedade brasileira um "furo" financeiro de proporções incalculáveis. Basta lembrar que, aos atuais níveis de inflação, o coeficiente de equiparação salarial (CES) para reajustes anuais de 1,25, em vigor, não será suficiente para amortizar mais do que cerca de 45% do valor dos financiamentos contratados, consubstanciando-se, desse modo, a existência de vultosos subsídios implícitos, concedidos sem critérios, sem cobertura financeira e no mais flagrante desrespeito às prioridades sociais.
Há necessidade de fazer o SFH voltar sua atenção exclusivamente para a produção habitacional ("stricto sensu") de interesse social, ou seja, para famílias de renda até o teto máximo de três ou cinco salários mínimos de renda mensal, proibindo-se operações que ultrapassem 900 UPC. Urge também o retorno ao plano de amortização financeiramente correto: o Plano de Correção Monetária, pelo qual prestações e saldos devedores são corrigidos trimestralmente pela variação da UPC.
Além dessas medidas, de características elementares num sistema de alto conteúdo social como a habitação popular e que, por captar recursos do público, tem a responsabilidade de preservá-los da corrosão inflacionária, há que se atentar para a compatibilização entre a baixa renda do público-alvo e o custo da moradia. Assim, torna-se imprescindível que o SFH seja reformulado de forma a que: a) a maior parcela possível dos recursos disponíveis seja canalizada para a habitação popular; b) os custos físicos e financeiros sejam reduzidos, tornando a moradia mais acessível às camadas populacionais de baixa renda.
Na obtenção desses objetivos são sugeridas as seguintes medidas:
Sugestão I — O fomento à atividade habitacional de interesse social será implementado exclusivamente pelo BNH, que passará a atuar como agente do governo. Os recursos do FGTS, acrescidos dos depósitos de poupança (cadernetas de poupança), passarão a ser captados exclusivamente em nome do BNH.
Sugestão 2 — O BNH, assim capitalizado, passaria a conceder financiamentos tão somente aos usuários finais dos serviços habitacionais, não mais operando com repasse via agentes financeiros, nem tampouco financiando as atividades dos agentes promotores (construtores, Cohabs ou cooperativas habitacionais).
Sugestão 3 — Os atuais agentes financeiros do SFH, que compõem o SBPE, passariam a atuar como bancos hipotecários, vinculados ao Banco Central, com área de atuação especializada no mercado imobiliário e independentemente do BNH.
Sugestão 4 — Implementação, com as alterações que se fizerem necessárias, do disposto no artigo 23 da Lei 112 4.380/64, que criou o BNH, tornando compulsória a subscrição de letras imobiliárias de emissão dos bancos hipotecários, no percentual mínimo de 5% sobre o valor das construções cujo custo unitário exceda quinhentas vezes o maior salário mínimo.
Sugestão 5 — Estender o FGTS ao trabalhador rural e, ao mesmo tempo, limitar os créditos naquelas contas, rurais e urbanas, tão somente à correção monetária plena, não as remunerando com juros reais.
Sugestão 6 — Dentro dos programas de aquisição da casa própria, o BNH deverá privilegiar a solução dos "2 estágios", baseada na aquisição do lote popular urbanizado e num processo orientado de "autoconstrução".
Importante ressaltar a necessidade de financiar a mão-de-obra própria e/ou familiar no processo de autoconstrução, desembolsando recursos para a manutenção dos autoconstrutores durante o período de obras.
Sugestão 7 — Os planos de financiamento da casa própria do BNH deverão garantir plena equiparação salarial, limitando o comprometimento de renda familiar dos mutuários. A diferença entre o comprometimento de renda familiar contratual e aquele resultante do valor das prestações, quando este superar aquele, deverá ser coberta, a fundo perdido, pelo governo.
Sugestão 8— A adoção de programas orientados para a suplementação de aluguel para as faixas de renda inferiores, podendo tais planos ser desenvolvidos conjuntamente com prefeituras, companhias públicas locais e regionais e iniciativa privada. A forma de implementação financeira desses programas será a complementação do valor do aluguel em imóveis e em condições previamente determinadas, de forma a não comprometer mais do que uma porcentagem estipulada da renda familiar. A adoção deste elenco de reformas estruturais no SFH deverá corrigir suas principais deturpações, transformando-o num poderoso e eficiente instrumento de atuação na área social.
Doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA) e professor da Fundação Getúlio Vargas.