A criação da comissão de estudos para propor melhorias no Sistema Financeiro da Habitação (SFH) demonstra a ampla convicção, por parte do governo, de que a atual estrutura do sistema é insustentável, e que precisa ser urgentemente reformulada. Em recente trabalho apontei as principais falhas do SFH, propondo alternativas capazes de recuperar a eficácia e a credibilidade da política habitacional brasileira. As principais medidas propostas podem ser agrupadas em três grandes grupos.*
Em primeiro lugar, vêm aquelas que visam baratear o custo da moradia, tais como o retorno ao atendimento exclusivo da habitação social e a proibição de concessões de financiamento superiores a 900 UPCs; maior ênfase nos processos de autoconstrução; a abolição do pagamento de juros reais dos depósitos do FGTS, reduzindo-se o custo de captação do sistema; e a separação entre o BNH e os agentes financeiros do SBPE, passando estes últimos a atuarem sob a órbita do Banco Central, como verdadeiros bancos hipotecários, no segmento livre do setor financeiro.
O segundo grupo de propostas visa maximizar a massa de recursos financeiros potencialmente disponíveis ao BNH, que passaria a atuar como um departamento de governo responsável pela implementação do plano oficial de construção de habitações de interesse social. As medidas incluem a interrupção dos financiamentos às construtoras, passando o BNH a financiar somente o mutuário final; a monopolização, pelo BNH, das aplicações dos recursos dos depósitos de poupança, que seriam, portanto, direcionados exclusivamente para contratos de até 900 UPCs; e a descontinuidade dos inúmeros serviços e financiamentos tidos como complementares à habitação que hoje abrangem diversas áreas, desde saneamento até as mais distantes atividades de suporte ao planejamento urbano, aos polos econômicos e ao artesanato.
Finalmente, o terceiro grupo de medidas visa a criação de um sistema de financiamento habitacional mais estável, cujas necessidades de subsídios governamentais sejam claramente explicitadas, evitando assim a obscuridade que envolve as contas do SFH, bem como as atuais armadilhas que levarão à sua insolvência financeira devido à geração de enormes resíduos ao final dos contratos. São elas o retorno ao "plano de correção monetária", pelo qual os saldos devedores e as prestações passariam a ser corrigidos trimestralmente; e a adoção da "equivalência salarial plena", não a que está sendo oferecida pelo SFH, mas um plano no qual o mutuário teria um teto de comprometimento de renda familiar com pagamento de prestações que, se ultrapassado, seria complementado com recursos governamentais do orçamento federal.
A adoção desse conjunto de providências poderia guiar uma nova política habitacional voltada para as camadas populacionais de interesse social, além de evitar que o SFH, como ocorre atualmente, atenda prioritariamente aos interesses empresariais e da classe média. Em resumo, a reformulação do SFH deverá caminhar por três principais vertentes: a elevação do montante de recursos disponíveis para o atendimento da habitação social, a redução dos custos dos financiamentos aos mutuários e a adoção de critérios transparentes e seletivos na utilização de recursos governamentais, revertendo a atual regressividade dos subsídios habitacionais concedidos pelo SFH, que, embora disfarçados, são de elevado montante.
Somente a opção pelos 112% deverá significar cerca de Cr$ 60 trilhões de subsídios aos mutuários, sem contar os resíduos contratuais resultantes da defasagem entre a correção das prestações e do saldo devedor. Dentro desta perspectiva, várias sugestões apresentadas para análise da comissão que proporá alterações no SFH não atenderão aos três principais critérios de reforma acima mencionados. A sugestão mais insistentemente avançada é a criação de depósitos de poupança trimestrais e semestrais, com a equivalente elevação da remuneração aos poupadores.
Tal proposta pode reduzir as perdas líquidas de depósito observadas nos últimos meses, mas, por outro lado, pode aumentar o custo médio de captação, dificultando ainda mais o financiamento habitacional para as famílias de baixa renda.
Esta proposta atenderia aos interesses dos agentes financeiros, já que, de modo geral, eles não atuam nas faixas de interesse social. Ademais, as taxas de juros efetivas de seus financiamentos ultrapassam de longe as aplicáveis às operações em programas de interesse social, podendo os agentes financeiros suportar custos de captação mais elevados, desde que obtenham melhorias em seus fluxos de caixa.
Vale lembrar ainda que os percalços das cadernetas de poupança são causados principalmente pelas distorções introduzidas pela nova fórmula de cálculo de correção monetária e pelo elevado nível das taxas reais de juros. Considerando-se que os depósitos de poupança representam hoje quase 30% do total dos haveres financeiros não-monetários, não é surpreendente que a poupança tenha dificuldades para manter constante sua parcela de recursos.
O melhor caminho para a manutenção da competitividade da poupança seria atuar sobre as taxas de juros de mercado, sobre os prazos de outros papéis financeiros, bem como impedir a ocorrência de diferenciais entre a inflação e a correção monetária. Desta forma, tornaria possível a manutenção dos saldos de recursos sem aumentar o custo do financiamento habitacional.
Do ponto de vista da eficácia do SFH como executor de uma política habitacional, é mais importante o redirecionamento dos recursos da poupança para aplicações nas faixas de interesse social do que tentativas de evitar flutuações marginais de depósitos.
Outras propostas aventadas para reformular o SFH envolvem soluções para problemas de segmentos econômicos específicos, geralmente não dando a devida importância ao funcionamento global do sistema. É preciso que a comissão recém-criada para estudar o SFH parta do princípio de que ele, como está, é inviável e que, portanto, necessita de um plano de reforma integrada e capaz de fazê-lo retornar aos objetivos que motivaram sua criação: a habitação de interesse social.
Finalmente, é preciso recordar que o SFH mobiliza hoje recursos da ordem de Cr$ 200 trilhões, e que se este montante tivesse sido canalizado exclusivamente para a produção de habitações para famílias de baixa renda, possivelmente a questão habitacional brasileira já teria sido equacionada, ao menos em seus aspectos mais graves, como o favelamento e o acúmulo de pessoas em grandes centros urbanos brasileiros. O cerne do problema não é tanto a falta de recursos, mas sim a forma como têm sido utilizados.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, é professor do departamento de Economia da Fundação Getulio Vargas (SP), doutor pela Universidade de Harvard (EUA) e consultor econômico da Folha.