A pauta de discussão a favor ou contra a reforma agrária no Brasil sempre girou ao redor de alguns conceitos, ou dogmas, aceitos sem maiores questionamentos acerca de sua validade empírica. Em artigo publicado na Folha, em 23 de junho último, apontei para o equívoco implícito na concepção de que a terra seria um bem não-produzido, e que sendo um "dom de Deus, legado a toda a humanidade" deve ser distribuída de forma mais equitativa. Obviamente, como qualquer outro meio de produção, é originariamente um produto da natureza, o que não implica poder ser utilizada sem que nela se efetuem investimentos e melhorias. Portanto, tal argumentação para justificar o acesso à terra ao trabalhador rural não é sustentável em economias capitalistas, mais do que seriam pleitos pela distribuição dos bancos aos bancários, ou as indústrias aos operários que nelas trabalham.
Sobre a reforma agrária, existem outras "verdades absolutas" que precisam ser melhor analisadas. Uma delas refere-se à utilização da terra como reserva de valor e como meio de especulação imobiliária em detrimento de sua função produtiva. O problema precisa ser analisado em duas partes. A primeira refere-se ao potencial produtivo da terra, à política agrícola adotada e às condições gerais do mercado agrícola, fatores condicionantes da rentabilidade dos investimentos na agricultura; a segunda refere-se à evolução dos preços da terra, justificando ou não sua utilização como forma de especulação e reserva de valor.
Com a evolução da conjuntura econômica brasileira dos últimos anos, caracterizada por profunda recessão, alta inflação e elevados juros, torna-se relativamente branda a tarefa de justificar a queda nas inversões, a redução na produção per capita de produtos para o mercado interno, e o mau aproveitamento das terras disponíveis. Esta demonstração torna-se ainda uma empreitada mais amena ao verificar-se que nas lavouras de exportação, ou substituidoras de importações, onde as condições de mercado permitiram rentabilidade mais elevada, o crescimento da produção, da produtividade e do aproveitamento de áreas foi bastante elevado. Quanto ao segundo fator, a especulação com terras, cabe apontar que, segundo recente análise efetuada pela Fundação Getúlio Vargas, os preços de vendas de terras no Brasil vêm caindo em termos reais desde 1975-77.
O quadro abaixo mostra que os preços da terra aumentaram sensivelmente entre o período 1971/72 e 1975/77, possivelmente como reflexo do "milagre" e das políticas de investimentos visando a interiorização da agricultura brasileira. Contudo, a partir de 1975-77, os preços sofreram declínio real tornando-se, portanto, más aplicações especulativas de capital, não justificando a alegação de que teria prevalecido no Brasil a prática de sua retenção improdutiva. As variações nos preços da terra foram muito mais elevadas nas áreas de lavouras e campos do que das glebas de pastagens e matas. Destarte, guardou-se correlação entre o potencial produtivo da terra e a evolução de seus preços, demonstrando que a demanda por terra não foi preponderantemente condicionada pela prática de especulação; caso contrário a tendência seria no sentido de uma relativa uniformização na variação de seus preços.
Cabe apontar ainda que a retenção especulativa da terra só foi justificável entre o período 1971/72 e 1975/77, quando efetivamente os preços elevaram-se bruscamente. A partir de então, a retenção da terra improdutiva visando unicamente a sua valorização frustrou-se inexoravelmente (exceção feita, obviamente, a casos específicos com fortes vantagens locacionais), resultando em pesadas perdas aos eventuais "especuladores". Vale lembrar, aceitando-se um custo de oportunidade do investimento na aquisição de terra de 12% reais ao ano, equivalente ao retorno alternativo do capital em aplicações financeiras, que no período entre 1966 e 1977 —quando os preços da terra atingiram valorização máxima— as aplicações financeiras teriam gerado um retorno bruto de 348%. Somente o valor de terras de lavoura e campos superaram aquele índice —mesmo assim a níveis minimamente superiores— ao passo que o preço de pastagens e matas evoluiu a níveis inferiores às aplicações financeiras.
Não há, portanto como sustentar que, no geral, a evolução dos preços no Brasil tenha sancionado a generalizada prática da retenção especulativa da terra agrícola. Mas aqui uma ressalva torna-se necessária —glebas com vantagens locacionais específicas certamente comportariam serem utilizadas para fins especulativos, principalmente em regiões próximas de centros urbanos e de concentração de grandes investimentos públicos. Assim, a existência de áreas agriculturáveis ociosas deve ser explicada pelas baixas perspectivas de rentabilidade do mercado agrícola em geral; porém, quando isoladamente ocorram com fins especulativos justificam-se plenamente medidas corretivas. Dificilmente, contudo, tais distorções seriam tão graves a ponto de demandar uma intervenção tão massiva na estrutura agrária como proposta pelo 1° Plano Nacional de Reforma Agrária do Mirad.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI ALBUQUERQUE, é doutor em economia pela Universidade de Harvard (EUA), professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e consultor econômico desta Folha.