Domingo passado abordei a questão da retenção especulativa da terra, mostrando a impropriedade de considerá-la como um fenômeno generalizado. Um segundo mito na discussão da reforma agrária refere-se à hipótese de que nas propriedades de maior área os índices de ociosidade da terra são mais elevados. Curiosamente, tenta-se consubstanciar tal hipótese por vias tortuosas, tais como pela comparação entre percentagem da área total ocupada por propriedades num determinado estrato de tamanho, e a percentagem do valor da produção global nelas originada. Tal raciocínio é evidentemente falacioso, já que eventuais discrepâncias nas proporções observadas podem originar-se na utilização de funções de produção distintas - ou seja, nos diferentes graus de intensidade com que a terra é explorada. Convém ressaltar que a ordenação de índices de produtividade parcial não implica correspondente ordenação nos índices de eficiência econômica, um ponto de teoria microeconômica elementar frequentemente ignorado por estudiosos da reforma agrária no Brasil.
A tabela 1 mostra o padrão de utilização da terra por estratos de tamanho dos estabelecimentos agrícolas. Do total das terras de estabelecimentos agropecuários brasileiros, 13,3% acham-se sob cultivo de lavouras, 27,7% são pastagens, e 59% acham-se "sem utilização", assim chamadas as áreas efetivamente não aproveitadas (agriculturáveis ou não), bem como aquela parcela da área total que seria liberada caso a ocupação do solo, principalmente na pecuária, atingisse os padrões médios nacionais de eficiência. Tais estimativas indicam que cerca de 218 milhões de hectares não estariam sendo utilizados para fins produtivos, pois segundo o Censo Agropecuário de 1980 (tabela 2) a área total dos estabelecimentos agrícolas atingia 369 milhões de hectares. De acordo com a tabela 2, as terras em descanso, as florestas e as terras improdutivas chegam a aproximadamente 111 milhões de ha, restando 107 milhões de hectares que, segundo nossas estimativas, estariam efetivamente ociosas (ou desempregadas por limitações de mercado?), e aptas a serem colocadas em uso produtivo.
Vê-se, portanto, que cerca de 30% do total das áreas agrícolas poderiam, potencialmente, ser colocados em uso imediato, sem necessidade de maiores investimentos em infraestrutura física. Contudo, analisando-se o fenômeno da não-utilização da terra segundo grupos de área dos estabelecimentos agrícolas nota-se que a alegada diferenciação nos índices de utilização, segundo classes de tamanho, é bem menos nítida do que comumente alardeada. Nas propriedades de menos de 10 hectares, 10,4% da terra não é utilizada para culturas ou para pastagens. Esta percentagem é pequena, considerando-se a existência de terras não agriculturáveis, e também a necessidade de áreas para a construção de prédios e estradas. Desta forma, esses estabelecimentos utilizam praticamente a totalidade das áreas disponíveis com fins produtivos. Por outro lado, as de mais de 1.000 hectares, mantêm sem aproveitamento 72,5% de sua área total.
É possível justificar parcialmente tal fato, principalmente nas áreas da fronteira agrícola, pela necessidade de grandes investimentos para torná-las produtivas, tais como os custos de derrubada, construção de estradas, aquisição de equipamentos, além de impedimentos fixados pela legislação de proteção ambiental. É nas duas categorias intermediárias, no entanto, que o problema da terra produtiva não-utilizada torna-se socialmente pernicioso, já que nelas concentra-se a maior parte dos investimentos efetuados no passado. No grupo de estabelecimentos entre 10 e 100 hectares, 50,7% da terra permanece ociosa, ao passo que no grupo entre 100 e 1000 hectares esta porcentagem é menor, isto é, de 48,5%. É interessante observar que esta porcentagem é menor no grupo entre 100 e 1.000 hectares do que no grupo imediatamente abaixo - diferentemente do que é geralmente aceito - e que este fenômeno ocorre nos dois grupos não considerados "problemas" dentro da dicotomia minifúndio-latifúndio.
Convém notar ainda que os índices de ociosidade da terra observados nos estabelecimentos de tamanho entre 20 hectares e 500 hectares (que segundo o FIBGE representavam, em 1980, 71% da área total e 35% do total de estabelecimentos) situam-se entre os valores extremos de 46,5% e 59,7%, mostrando diferenças que provavelmente não são estatisticamente significativas. Tais constatações dão uma clara indicação de que a solução para o problema deve ser buscada na escolha de uma política econômico-agrícola adequada, e não necessariamente em modificações na estrutura da posse da terra, embora em casos específicos esta última possa tornar-se imperiosa. Assim, políticas de preço, comercialização e incentivo de crescimento do mercado consumidor interno poderão ser eficientes mecanismos para induzir a maior utilização das áreas disponíveis, mesmo mantendo-se o atual padrão de propriedade de terra.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, é doutor em Economia pelo Universidade de Harvard (EUA), professor do Fundação Getulio Vargas (SP) e consultor econômico da Folha.