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Marcos Cintra

O processo de planejamento: uma classificação e sua aplicação nos países subdesenvolvidos


Este trabalho é uma tentativa de introduzir um esquema de classificação mais aplicável aos países subdesenvolvidos. Na primeira parte, o esquema é introduzido, e suas características principais são enfatizadas. Na segunda, o processo de planejamento nos países subdesenvolvidos é analisado, e a classificação sugerida na primeira parte é utilizada, a fim de se captar as características mais importantes do planejamento dos países menos desenvolvidos. Na terceira, é analisado um processo de planejamento específico - o da construção de Brasília. Mais uma vez, é usada intensivamente a classificação sugerida na primeira parte. Ao longo deste trabalho, o Brasil é usado como um exemplo, já que, em grande parte, suas características podem ser generalizadas para outros países em desenvolvimento.


1. UM ESQUEMA DE CLASSIFICAÇÃO

Planejamento é um processo constituído de uma sequência contínua de atos ou eventos, motivados por uma certa imagem idealizada da realidade, imagem esta que se visa atingir.1 Tem uma conotação inequívoca de processo social, através do qual os planejadores devem orientar o movimento geral de sistemas sociais para objetivos socialmente desejados, apesar de poder também ser entendido como o resultado de escolhas de indivíduos em assuntos que dizem respeito aos seus próprios graus de percepção.


A ação de planejamento tende a perturbar a ordem existente no sistema em que opera, que, por sua vez, afetará todas as outras partes interligadas do sistema social geral. O grau em que o sistema social será afetado pelo planejamento dependerá da natureza, alcance e representatividade do processo de planejamento em questão.


I. A natureza do processo de planejamento relaciona-se com a extensão da área afetada do sistema social existente. Diferenciamos três tipos de planejamento, com relação à sua natureza: administrativo, funcional e estrutural.


a) O tipo de planejamento administrativo objetiva maior grau de racionalidade e eficiência na implementação e complementação de qualquer intenção explícita de ação. Ele afeta um dado sistema, somente de modo indireto, no sentido que procura transpor qualquer hiato entre a intenção e a ação correspondente. Exemplos são o PPBS, programas de gastos financeiros, programa de sequência de ações (PERT), etc. É claro, as características do planejamento de tipo administrativo não estão presentes somente em técnicas já desenvolvidas e enlatadas, como as citadas acima. Seus traços estão igualmente presentes em qualquer ação que tem por fim a eficiência administrativa, mesmo que tal ação não seja parte de algum método bem definido.


O tipo de planejamento administrativo, por sua própria definição, não é um processo auto-suficiente. Requer a existência de intenções particulares e uma imagem de realidade na qual tais intenções de agir são eficientemente implementadas. Este conceito não é idêntico ao da simples adoção de técnicas administrativas que são, por si só, vazias de significado. Mais que isso, é um processo pelo qual as técnicas a serem usadas são selecionadas de acordo com uma intenção específica de agir. Em outras palavras, presume-se que o sistema seja fechado, e que neste caso o estado final de um sistema é determinado pelas condições iniciais.3 Nestas circunstâncias, supõe-se que o resultado de uma ação planejada dependerá da eficiência com que é executada.


b) O tipo de planejamento funcional relaciona-se com a conversão de inputs em outputs. É uma tentativa de aumentar o nível de eficiência de um dado sistema. É baseado em uma imagem da realidade, onde recursos escassos são eficientemente convertidos em bens e serviços. Este conceito de planejamento é definido em relação a um sistema existente e que esteja funcionando, e não visa à sua mudança, mas somente ao aperfeiçoamento de seu desempenho. A maioria dos planos econômicos cai nesta categoria. Normalmente, mas não necessariamente, ela se relaciona com técnicas de otimização e geralmente é concebida e constituída por grupos de indivíduos formalmente estruturados com mentalidade científica, comumente conhecidos por tecnocracia.


c) Finalmente, o tipo de planejamento estrutural destina-se a reformas ou mudanças na estrutura básica dos sistemas. É, de acordo com nossa classificação da natureza do planejamento, o tipo que pode trazer maiores mudanças em qualquer sistema. Destina-se a perturbar a ordem existente e alcançar um novo equilíbrio em um ponto mais desejável no plano das possibilidades. Diferentemente do planejamento funcional, não se baseia no tipo marginal e orgânico de mudanças paramétricas, mas sim em grandes modificações estruturais nos padrões de relações sociais existentes. É bastante difícil identificar exemplos deste tipo de planejamento. Estivemos definindo diferentes tipos de planejamento, de acordo com sua natureza, em termos de sua relação com um sistema existente. Entretanto, em que categoria se deve colocar qualquer processo de planejamento é algo que só pode ser decidido a posteriori. Em outras palavras, o resultado desejado ou esperado de um processo de planejamento pode ser bastante diferente do resultado obtido. Assim sendo, um planejamento do tipo administrativo pode acabar por criar importantes mudanças estruturais no sistema.4 Isto é uma ocorrência bastante comum em áreas subdesenvolvidas, onde a adoção de novos procedimentos administrativos pode resultar em algum efeito modernizante, que por sua vez, pode levar a mudanças estruturais no sistema. Como veremos mais adiante, um bom exemplo de desempenhou as funções para as quais foi planejada, enquanto não se pode dizer o mesmo do planejamento altamente inovador que está sendo atualmente realizado na região amazônica do Brasil.


II. O segundo fator que condiciona o efeito do planejamento no sistema social é o alcance do processo de planejamento.


Por alcance, entenderemos a área pretendida de impacto de um processo de planejamento qualquer. Diferentemente da classificação por natureza do processo de planejamento, o alcance só pode ser descrito como um continuum de classes. Em um extremo, temos processos de planejamento referentes a um agente econômico ou social específico, como, por exemplo, uma associação de bairro ou uma firma. Neste caso, o alcance do processo de planejamento é restrito e seu impacto no sistema como um todo tenderá a ser limitado. No outro extremo da escala, podemos observar processos de planejamento referentes à totalidade do sistema social. Este é o caso com o planejamento global no qual a abordagem sistêmica é aplicada com maior utilidade.


Neste caso, é analisado o largo inter-relacionamento entre os subsistemas dentro de um sistema global. Este tipo de planejamento tende a afetar uma parte maior do sistema do que projetos individuais, apesar de as observações a respeito de equifinalidade, feitas com referência à natureza do planejamento, também se aplicarem em relação ao seu alcance. O conceito de alcance de um processo de planejamento só pode ser definido em relação a um dado sistema. Por exemplo, se considerarmos uma nação inteira como um sistema, o alcance de um processo de planejamento poderia ir de um projeto restrito até o planejamento global de desenvolvimento econômico nacional, com categorias intermediárias de planejamento tais como setorial, urbana, metropolitana e regional. Paralelamente, tomando-se uma área metropolitana como nosso sistema, o alcance do processo de planejamento começaria num projeto localizado para terminar num plano-diretor para toda a área metropolitana.


III. Finalmente, o grau em que o sistema geral é afetado por ações de planejamento dependerá da representatividade do processo de planejamento envolvido.


Aqui, novamente, defrontamo-nos com um espectro de possibilidades e não com categorias estanques. Ações de planejamento podem ser motivadas por um indivíduo reagindo a um processo e, neste caso, elas tendem a afetar o sistema apenas de um modo limitado. De outro lado, seu efeito pode ser amplo, se elas são motivadas por reações coletivas. Assim sendo, a representatividade de um processo de planejamento refere-se ao tamanho da parte do sistema total que está reagindo a um certo processo. Entre os dois extremos, nominalmente, o processo individual e o comunal, temos o planejamento municipal e estadual, que pode ou não coincidir com o planejamento metropolitano e regional. É interessante contrastar os conceitos de alcance e representatividade do processo de planejamento. Enquanto alcance refere-se à área de impacto das ações de planejamento, a representatividade refere-se à área originária do processo. Em outras palavras, um conceito caracteriza o planejamento de acordo com os resultados pretendidos, enquanto o outro, de acordo com suas forças de motivação.



A classificação em categorias descritivas torna possível a análise de um dado processo de planejamento, de acordo com suas características mais destacadas. É claro, tal rotulação é arbitrária e tende a refletir a maneira como o analista vê o processo envolvido. Entretanto, se alguns traços comuns pertencentes a processos de planejamento podem ser identificados, deveríamos ser capazes de transpô-los ao processo em estudo. Provavelmente, tornou-se óbvio que as três classificações básicas sugeridas (natureza, alcance e representatividade) não são categorias mutuamente exclusivas. Pelo contrário, a combinação de características das três categorias é necessária para descrever qualquer processo de planejamento.


Com este esquema proposto em mente, tentaremos identificar algumas características importantes do processo de planejamento dos países subdesenvolvidos, fazendo referências ao Brasil. Em seguida, observaremos mais atentamente um exemplo - a construção de Brasília. O processo de planejamento será visto de um ponto de vista coletivo, o que significa que não nos dirigiremos aos de baixa representatividade, como o planejamento individual. Não que este não seja importante, pelo contrário, é na racionalidade do planejamento individual que, muitas vezes, encontramos a chave para o sucesso ou fracasso de processos de planejamento coletivo.


2. PLANEJAMENTO NOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

Recentemente, o processo de planejamento parece estar tomando duas direções opostas: de um lado, observamos interesse crescente em um retorno a métodos de planejamento que se baseiam em troca informal de informações entre o planejador e o grupo social afetado, enquanto do outro, observamos uma importância crescente das técnicas analíticas impessoais e sofisticadas. A primeira tendência justifica-se enfatizando os perigos inerentes à distância crescente entre planejadores e aqueles a quem devem servir. Ela enfatiza a função política renovada, na qual os planejadores devem atuar a fim de filtrar os desejos populares em medidas políticas concretas. O planejamento é visto como um componente importante das instituições de orientação social, e através de contatos constantes com seus clientes, os planejadores devem envolver-se em um processo de aprendizado mútuo e intercâmbio de ideias.


A segunda tendência sugere uma crescente cientificação do planejamento. "A proliferação de estudos de planejamento envolvendo o uso de modelos simulados de descrição e previsão, a teoria dos jogos, análise de custo-benefício e custo-eficácia e outras metodologias sistematizadas evidencia o interesse na adoção destas abordagens." De acordo com esta abordagem, o planejador torna-se um técnico, responsável pela formulação de objetivos e pela escolha entre alternativas de ação. Sua função "torna-se a de determinar os parâmetros dentro dos quais a ação é possível, desenvolver alternativas que se conformam a estes parâmetros, e testar estas alternativas para descobrir qual fornece a solução mais desejável." Fica a cargo do planejador especificar as probabilidades e utilidade para estados alternativos e selecionar qual levaria a um grau satisfatório (diferente de ótimo) de bem-estar público.


Esta abordagem de planejamento, apesar de largamente usada, está sendo fortemente atacada. "A teoria do planejamento precisa começar pelo reconhecimento da natureza política do ato de planejar. Qualquer tentativa para despolitizar o planejamento através da tentativa de criar um planejamento neutro, baseado na ciência, é falácia e somente pode levar à prisão dos planejadores e de suas decisões a certos interesses políticos." Talvez uma acomodação entre estas duas tendências seria uma abordagem mais satisfatória do planejamento. "Algumas tentativas têm sido feitas para contrabalançar a tendência de permitir que os desenvolvimentos técnicos obscureçam as preocupações mais intangíveis do planejamento. Isto, é claro, é o objetivo do planejamento sistemico, como foi formulado pelo Dr. Catanese e por mim mesmo (Dr. Steiss), isto é, a integração de métodos e técnicas rigorosas com julgamentos e práticas qualitativas de planejamento."


Estas duas direções trilhadas atualmente pelo planejamento são o reflexo de dois conceitos opostos sobre o processo de planejamento. Um enfatiza a natureza idealista do planejador, por meio da qual é comparado ao tomador de decisões livre e racional, influenciado apenas por sua própria percepção dos objetivos socialmente desejados. Outra enfatiza a abordagem determinística, por meio da qual fatores circunstanciais determinam o desenvolvimento do processo de planejamento.


Nos países em desenvolvimento, estas tendências devem produzir contrastes ainda mais agudos. Enquanto são dadas aos objetivos econômicos maiores prioridades no seu processo de planejamento, é bastante claro que desenvolvimento requer uma abordagem mais estrutural, inovadora e qualitativa, enquanto o crescimento econômico pode ser alcançado através de uma abordagem do planejamento mais funcional e alocadora.


O caráter de urgência, através do qual são dadas altas prioridades a considerações econômicas no processo de planejamento, é facilmente entendido quando consideramos a baixa renda per capita na maioria dos países subdesenvolvidos, que, agravada pela alta concentração da renda, coloca grandes proporções de sua população ao nível de subsistência. Este fato, juntamente com crescentes expectativas populares, é suficiente para justificar alta prioridade a processos de planejamento cujas consequências sejam dirigidas para o crescimento e desenvolvimento econômicos. Diante de tais perspectivas, a parte principal dos processos de planejamento, nos países subdesenvolvidos, é de natureza funcional. Várias razões justificam esta escolha.


O planejamento funcional é o tipo mais fácil de planejamento disponível, no sentido em que know-how pode ser facilmente importado, seja através da ajuda de consultores estrangeiros, planejadores e especialistas, ou através da disponibilidade de tecnocratas adequadamente treinados. Também é esta a abordagem mais adequada para produzir os mais altos retornos a curto prazo e, consequentemente, é facilmente justificada em termos da urgência do processo de crescimento desejado. Por isso, é o tipo ideal de planejamento para políticos necessitados de rápidas provas de desempenho. É razoavelmente barato e não perturba de maneira significativa a ordem existente no sistema em que é introduzido. Objetiva, meramente, um aumento na sua eficiência, sem realmente introduzir quaisquer fatores exógenos.


Já que o planejamento funcional destina-se a aumentar a eficiência do sistema, ele se concentra em estruturas já existentes e falha, por conseguinte, em identificar a necessidade de certas mudanças paramétricas, sem as quais o resultado desejado - desenvolvimento econômico - dificilmente será alcançado. Este tipo de planejamento pressupõe que o sistema reagirá espontaneamente a uma maior eficiência, gerando um processo endógeno que leva ao desenvolvimento econômico.


Um fato interessante a respeito do planejamento em países subdesenvolvidos é que sua confiança no planejamento funcional é frequentemente frustrada por deficiências na fase de implementação. A falta de planejamento administrativo anterior tende a reduzir o impacto das ações propostas e, como consequência, o desempenho é geralmente bastante inferior às expectativas. De outro lado, tais fatos geram um processo que leva ao planejamento administrativo, ainda que este devesse ser anterior ao planejamento funcional.


A longo prazo, tais mudanças no sistema administrativo e o desenvolvimento geral no desempenho do sistema econômico tendem a iniciar um processo de modernização e desenvolvimento econômico. Esta é a interpretação clássica do processo de desenvolvimento econômico, por meio da qual o sistema é marginalmente transformado para alcançar níveis mais altos de bem-estar econômico.


O modelo funcional-administrativo de planejamento descrito, geralmente adotado em países subdesenvolvidos, contrasta bastante com conceitos de planejamento em países desenvolvidos, onde ele é menos difundido, apesar de as estruturas administrativas e estatísticas terem alcançado um alto grau de sofisticação. Igualmente, a eficiência econômica geral do sistema é consideravelmente superior àquela dos países em desenvolvimento, o que explica seu pouco interesse no planejamento funcional.


O planejamento estrutural apresenta um profundo contraste com o planejamento funcional no contexto dos países subdesenvolvidos. Ele não pode ser realizado, com sucesso, por know-how e pessoal importados. Destinado basicamente às raízes do sistema em questão, ele requer uma profunda compreensão dos processos envolvidos, o que é uma característica raramente encontrada em consultores estrangeiros. Além disso, a falta de dados estatísticos impede o uso efetivo de técnicas otimizadoras, que é a área em que o pessoal estrangeiro é mais útil. (Entretanto, mesmo que dados estatísticos fossem disponíveis, o planejamento estrutural não necessitaria deles com a mesma intensidade que o planejamento funcional.)


Dada a urgência dos problemas nos países em desenvolvimento e a necessidade de resultados a curto prazo, os processos de planejamento estrutural são muito menos usados que os de planejamento funcional. Enquanto este último tenta desenvolver usos eficientes e racionais para recursos existentes e disponíveis; o primeiro, em geral, introduz usos adicionais e competitivos aos mesmos escassos recursos. Uma característica do planejamento estrutural é introduzir novos programas e projetos, que, devido à própria essência do planejamento estrutural, devem ser suficientemente amplos para criar um impacto sério no sistema existente. Geralmente, tais programas são volumosos e exigem fundos que precisam ser desviados de outros usos, gerando, em consequência, oposição interna. Além disso, os resultados a longo prazo - característica do planejamento estrutural - tornam mais difícil conseguir o apoio necessário para sua implementação, quando comparados com processos de planejamento funcional alternativos. Como resultado, eles dependem fortemente da natureza política do planejamento.


Outra característica interessante do planejamento estrutural é a sua fraca ligação com o planejamento administrativo e com os dados estatísticos. Em uma magnitude mais ampla que o planejamento funcional, os processos estruturais podem ser bem-sucedidos sem o uso de técnicas formalmente estruturadas, projeções, administração, etc. A razão disso é que eles se baseiam mais firmemente na compreensão do próprio sistema e na sua capacidade de iniciar um processo viável. Tem uma característica bastante inovadora e, geralmente, envolve processos que não são comumente encontrados e, por conseguinte, não se pode obter muita informação sobre eles. O planejamento estrutural concentra-se mais na mudança e no desenvolvimento do que no crescimento linear.


Olhando o alcance dos processos de planejamento nos países em desenvolvimento, vê-se antes uma tendência do que alguma característica particular. A tendência geral tem sido uma mudança na direção de processos de planejamento caracterizados por um largo alcance. Geralmente, a experiência de planejamento em países em desenvolvimento começa por planos setoriais. O alcance de tal planejamento tende a ser limitado pela importância dos setores envolvidos. Em geral, os países subdesenvolvidos começam planejando para algumas áreas básicas do setor industrial, como a indústria pesada, a indústria química, etc. Igualmente, os esforços iniciais estão, em geral, localizados nos setores da energia e do transporte, gerando, com isso, uma infraestrutura que pode servir de base para a industrialização.


Um esforço consideravelmente inferior e dirigido para a agricultura e o setor de serviços, novamente motivado pelos processos envolvidos, relativamente mais difíceis e custosos. Aqui, novamente, a facilidade com que a tecnologia emprestada é importada é um fator crucial na determinação do desenvolvimento do processo de planejamento. Poderíamos dizer que, com exceção de algumas tentativas esporádicas no planejamento urbano global, associado com a construção de novas cidades, a maioria dos países subdesenvolvidos começa com processos de planejamento caracterizados por curto alcance e tem tendido para planos mais globais e de mais largo alcance.


Frequentemente, as tentativas de planejamento não podem ser mais globais, devido a limitações impostas pela estrutura do sistema. Este é o caso de tentativas de planejamento ao nível municipal ou estadual, que não tenham à sua disposição muitos dos instrumentos necessários para executar a política pública apropriada. Como esses instrumentos estão nas mãos do governo central, isso não deixa qualquer alternativa, a não ser reduzir consideravelmente o alcance de tais processos.


Mesmo as tentativas de planejamento nacional são, muitas vezes, bem menos globais do que possam parecer à primeira vista. Sendo geralmente de natureza funcional, como mencionado acima, elas tendem a considerar a estrutura existente do sistema como seu único campo de ação. Como o subdesenvolvimento pode ser também caracterizado pela falta de integração e, frequentemente, pela marginalização de certas partes do sistema, falta a essas tentativas de planejamento maior amplitude, na medida em que ignoram essas partes marginais. Há também uma tendência, no planejamento dos países menos desenvolvidos, de serem mais bem-sucedidos em processos de planejamento de alcance relativamente curto. Isso se deve ao fato de que os recursos são escassos e, quanto mais amplo um processo de planejamento, tanto maior a tendência de diluí-los e, portanto, de reduzir a eficácia do planejamento.


Finalmente, o grau de representatividade do planejamento em países subdesenvolvidos está intimamente relacionado com os processos políticos. A mera afirmação de políticos de que são capazes de captar o desenvolvimento de alguns processos sociais no sistema, e que estão dispostos, como resultado, a iniciar um processo de planejamento, é o suficiente para que consigam apoio popular. Em geral, o planejamento é inicialmente observado de maneira concreta, através de declarações políticas que enfatizam a necessidade de se alcançar certos objetivos, bem como através de indicações de como se espera alcançá-los. Geralmente, esses objetivos estão bastante ligados ao crescimento econômico e, em um grau menor, com o desenvolvimento do sistema.


Como é de se esperar, tais declarações recebem largo apoio popular, o que tende a oferecer perspectivas de alta representatividade aos processos de planejamento nos países subdesenvolvidos. Entretanto, a alta representatividade está presente apenas nos estágios iniciais do processo. Uma vez que se apresentem regiões ou setores competindo para receber os investimentos públicos, várias visões conflitantes começam a aparecer e a comprometer a eficácia do processo de planejamento. Tais atitudes conflitantes tendem a se tornar ainda mais antagônicas nos estágios de implementação, deste modo reduzindo, ainda mais, a representatividade do processo. Esta é uma das muitas razões do porquê o planejamento funcional é preferido ao planejamento estrutural nos países subdesenvolvidos.



Alcançar um grau de representatividade tão alto quanto possível em qualquer processo de planejamento é um dos desafios mais sérios em países subdesenvolvidos. Sua estrutura socioeconômica altamente polarizada, a falta de integração e os antagonismos regionais e raciais frequentes dentro de um mesmo país tendem a reduzir a representatividade do planejamento, à medida que o processo se desenvolve. Não é incomum, portanto, observar sequências de processos de planejamento que conseguem alcançar um certo estágio de desenvolvimento para logo após se esvaziarem. Um fato interessante nos países em desenvolvimento é a relação entre planejamento estrutural e sua representatividade. Certos processos de planejamento estrutural recebem, em seu estágio inicial, um apoio geral extremamente forte. Muitas vezes, eles são baseados em imagens da realidade que não iriam contra quaisquer interesses. Entretanto, como foi antes mencionado, uma forte oposição e desunião podem facilmente desenvolver-se em estágios posteriores, pondo em perigo o resultado do processo. Em tais situações, quanto menos estruturado for o processo, maiores serão as chances de não despertar oposição significativa. Nestas situações, o desencadeamento do processo dependeria de seu grau de soltura e flexibilidade como um meio de preservar sua alta representatividade. Tais processos são frequentemente caracterizados por um planejamento indicativo, e não diretivo, e são, muitas vezes, ligados a grandes investimentos governamentais em infraestrutura.



3. BRASÍLIA - UM EXEMPLO DE PROCESSO DE PLANEJAMENTO

Brasília, como qualquer outro processo de planejamento, está ainda em andamento. Para avaliar os resultados alcançados até agora, é preciso ter em mente que qualquer análise é incompleta, apesar de que se pode esperar identificar um certo espaço de tempo durante o qual os resultados de qualquer processo de planejamento são mais intensamente sentidos pelo sistema social. Brasília é ainda bastante incompleta, o que torna qualquer tentativa de avaliação um empreendimento bastante especulativo.


Brasília é mais que uma nova cidade. Representa o resultado de um longo processo, cujas raízes datam de dois séculos atrás, bem como a realização de um projeto que, durante muito tempo, atraiu a imaginação do povo brasileiro e que mais recentemente começou a ser interpretado como uma necessidade absoluta para o país. Não apenas deveria ser descoberta uma válvula de segurança para as crescentes pressões populacionais aglomeradas ao longo das regiões costeiras do país, mas também havia a necessidade de tentar criar novas oportunidades de emprego que, por sua vez, poderiam reforçar o mercado, dentro do processo de substituição das importações, então em pleno vigor no Brasil.


Baseada nestas considerações, Brasília deve ser analisada mais firmemente como a corporificação de fortes crenças na estratégia dos pólos de crescimento do que, simplesmente, como uma nova cidade supermoderna. Suas funções não eram as tradicionais funções da nova cidade: atração de excessos populacionais das áreas metropolitanas superpovoadas. Era então bem conhecido o fato de que problemas urbanos nos países subdesenvolvidos não podem ser atacados nas cidades, mas em suas origens - especificamente no binômio expulsão rural/atração urbana, e que qualquer nova cidade, por sua própria definição, será ainda mais atraente que os centros urbanos existentes, gerando, em consequência, outra fonte de problemas urbanos.


De um ponto de vista urbanístico, Brasília deve ser vista apenas como um monumento e um símbolo ao esforço feito pelos brasileiros em seu processo de desenvolvimento e não como um modelo ou exemplo de novas tendências urbanísticas. Brasília foi o resultado de um processo que requeria a expansão das fronteiras do país em direção ao interior. Foi somente um instrumento para a abertura de um novo processo de interiorização do país, com a cidade de Brasília atuando tanto como um pólo de atração, no sentido das novas cidades, quanto como um pólo de crescimento para o interior brasileiro, irradiando energia para as áreas vizinhas.


Todo o processo poderia ser descrito de forma bastante acurada, pelo modelo de integração urbano-agrícola de Von Thunem, por meio do qual o surgimento exógeno de um centro urbano leva à geração de anéis concêntricos mediados por custos de transporte. A construção de estradas associada à nova capital destinava-se a aumentar a interação da cidade com o resto do país, através do nivelamento do ângulo dos preços de transporte.


Poderíamos caracterizar o processo de planejamento envolvido na construção de Brasília como estrutural em sua natureza. Ele tentou criar um novo padrão de expansão territorial e econômica. O instrumento utilizado para alcançar tal objetivo foi a construção de um pólo de crescimento no interior do país. A indústria motora escolhida, cuja função é prover o pólo de dinamismo, foi a indústria de maior crescimento no Brasil: a administração federal.


O governo é, por várias razões, uma atividade particularmente adequada para agir como propulsor do crescimento - gera fortes ligações para trás na forma de mercados em crescimento para toda sorte de bens de consumo e serviços, através do crescimento contínuo de seu pessoal, como também na forma de consumo direto de serviços, como transações bancárias, assessoria, comunicações, transporte e assim por diante; igualmente gera fortes ligações para frente, especialmente na infraestrutura de serviços de comunicação e transporte, gerando condições à tomada de impulso para um processo de crescimento. Deu-se grande ênfase à construção de estradas, que, ligando a nova capital ao resto do país, conseguiram aumentar o grau de acessibilidade ao interior brasileiro.


Como podemos ver, o tipo de planejamento foi claramente de natureza estrutural. Foi uma tentativa de criar novas ligações que poderiam levar a um crescimento econômico e, também, uma tentativa de introduzir novas variáveis a fim de atingir o desenvolvimento.


Brasília é um bom exemplo de um processo de planejamento de alcance limitado, apesar de seus efeitos a longo prazo terem sido bastante abrangentes. Igualmente, o plano de Brasília estava longe de ser amplo, apesar de algumas importantes diretrizes terem sido estabelecidas. A maior parte do esforço de planejamento concentrou-se na área central, chamada de plano-piloto, enquanto as cidades satélites e o Distrito Federal como região foram bastante negligenciados e abandonados a processos de crescimento espontâneo. Da mesma forma, com exceção de algum planejamento na área de construção das estradas, a maioria dos outros setores não foi planejada.


Como foi anteriormente mencionado, esta abordagem não é sempre ineficiente, se os planejadores se defrontam com situações de escassez de recursos e incertezas, tais como as encontradas na construção de Brasília. Em adição, a estratégia de crescimento desequilibrado, escolhida neste caso, exige tipos de planejamento estrutural bastante localizados.

Os processos de planejamento podem, muitas vezes, encontrar forte oposição de vários grupos, reduzindo de forma sensível sua representatividade. No caso de Brasília, este problema foi evitado com sucesso, preservando-se um alto grau de representatividade. No princípio, a ideia de uma nova capital não foi contra os interesses de ninguém. Muito pelo contrário, encontrou um largo consenso entre toda a população. O sul industrializado adquiria novos mercados, a subdesenvolvida região nordestina encontraria novas terras onde parte de sua população crescente poderia se instalar. A nação como um todo teria uma nova fonte de emprego e orgulho.


A oposição ao plano foi habilmente evitada nos últimos estágios do processo de planejamento, através de um conjunto de mecanismos importantes e uma grande habilidade política. O plano era flexível e propositadamente vago, o que evitou possibilidades de confrontos com qualquer grupo específico. A falta de projeções financeiras exatas e estimações de custo foram importantes para evitar o medo de grandes pressões inflacionárias, que seriam inevitáveis se os custos reais tivessem sido prognosticados. Igualmente, a população de funcionários públicos foi atraída para fora do Rio - a cidade maravilhosa - muito mais pela oferta de pagamentos dobrados e aposentadoria em tempo mais curto do que através de cruéis decretos executivos. O plano da cidade foi escolhido de modo a permitir uma grande flexibilidade no desenvolvimento real da cidade, enquanto, ao mesmo tempo, sugeria um forte simbolismo sobre o qual a imaginação poderia estender-se longamente. Como resultado de tudo isso, o processo de planejamento caracterizou-se por uma alta representatividade e uma oposição relativamente fraca.


Infelizmente, muito pouco tem sido feito para avaliar os resultados da construção de Brasília. A capital e suas cidades satélites contam, atualmente, com mais de 800 mil habitantes, com uma alta taxa de crescimento prevista para o futuro. Seu impacto indireto na migração e colonização não é conhecido. Há, entretanto, evidências que mostram que ela foi bem sucedida em atrair a população para o interior do Brasil. Isso demonstra-se pelos maiores índices de crescimento de cidades como Brasília, Goiânia e Cuiabá do que das cidades mais antigas do litoral, como São Paulo e Rio de Janeiro.


A estrada Belém-Brasília, que corta áreas quase inabitadas nos últimos anos da década de 60, atraiu uma população superior a 2 milhões, ao longo de seu percurso. Mais uma vez, os movimentos migratórios foram completamente espontâneos e a contribuição do Governo limitou-se à construção da rodovia. O mesmo fenômeno deve ser observado ao longo das outras rodovias que ligam Brasília com as outras capitais estaduais no Brasil o que, sem dúvida, prova o sucesso de Brasília na colonização do planalto central brasileiro.


Em adição à atração de migrantes para a área, Brasília serviu ao objetivo fundamental de criar um mercado para produção local. Apesar de seu impacto na industrialização dos estados centrais não ter sido significativo, ela criou uma oportunidade para um aumento na produção primária e terciária. Além disso, o sucesso da experiência de Brasília foi, indubitavelmente, um fator primordial na motivação aos mais recentes e também mais ambiciosos projetos de colonização da região amazônica.



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