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  • Marcos Cintra

Questões habitacionais

Como exposto em um artigo publicado no último dia 8 de novembro, neste jornal, observam-se duas situações distintas que concorrem para a existência de áreas inexploradas em um contexto de déficit habitacional crônico nos grandes centros urbanos brasileiros. De um lado, uma situação causada pelo comportamento econômico improdutivo do proprietário de áreas inexploradas e que exigiria a presença firme do Estado para garantir o uso social dessas propriedades. Este lado da questão vem sendo detectado com frequência pelos estudiosos dos problemas urbanos e habitacionais de São Paulo.


De outro lado, face geralmente ignorada da problemática, surge a propriedade inexplorada como resultado direto de um modelo de ação governamental que discrimina contra a utilização de áreas em forma de parcelamento do solo, em lotes, para posterior construção individual pelo proprietário.


A situação habitacional atual dos grandes centros urbanos é resultado direto da omissão governamental em sua tarefa de estancar o processo especulativo e antissocial de parte dos proprietários de áreas urbanas, e também o resultado da ação consciente, porém insólita, por parte do governo de coibir o uso de tais áreas para fins de loteamentos impelindo seus proprietários a mantê-las estocadas e sem uso social.


Qual a solução para o problema habitacional com o qual nos defrontamos? A saída do impasse deve seguir por quatro vertentes principais. As duas primeiras já vêm sendo discutidas pelas autoridades municipais de São Paulo, ou seja, a imposição do imposto territorial urbano progressivo e a promulgação de legislação reguladora de parcelamento de solo que efetivamente estimule o aumento da oferta de lotes populares de baixo custo, como o projeto de lei atualmente preparado pela Prefeitura de São Paulo.


O imposto territorial urbano progressivo penalizaria os proprietários que, tendo condições de fazê-lo, não colocam suas áreas em efetivo uso social. A segunda vertente reduziria as exigências cujos custos excluem a população de baixa renda da posse de terreno e residência próprios, e, limitando-as ao mínimo essencial, estaria incorporando novamente no mercado residencial, por meio de preços mais baixos, a população hoje incapaz de habitar em imóveis alugados. Ao contrário do que se imagina, a atividade de parcelamento do solo urbano é um setor atomizado e altamente competitivo. A redução do custo da terra via aumento de sua oferta, a redução de parte da onerosa infraestrutura urbana hoje exigida e a reformulação do tamanho mínimo de lote permitido resultariam numa redução do preço do lote para o adquirente. Os que alegam o contrário, certamente não conhecem o mercado imobiliário de lotes populares.


Como terceira linha de ação é necessário que se reconheça que a atual legislação federal (Lei 6766 de 1979) bem como as exigências municipais e estaduais têm efetivamente desincentivado o parcelamento do solo urbano. A cidade de São Paulo se formou graças a projetos de loteamentos, como pode ser constatado, por exemplo, na zona leste de São Paulo, considerada, hoje, região de classe média e perfeitamente aceitável em termos de critérios urbanísticos, embora tenha surgido, há algumas décadas, como região de loteamentos essencialmente populares. É necessário que se retorne ao modelo de urbanização para as classes populares baseado no esforço individual e/ou comunitário de construção. Experiências já efetuadas aqui mesmo em São Paulo demonstraram que o custo por metro quadrado de construção, utilizando trabalho familiar, situa-se em nível sensivelmente abaixo do preço exigido nas construções de blocos residenciais financiados pelo Sistema Financeiro de Habitação e bem abaixo, inclusive dos projetos de casa embrionárias financiadas pelo BNH. É preciso também retornar-se ao padrão habitacional anterior, o qual, não exigia poupança financeira, hoje inexistente nas camadas de baixa renda, e se apoiava no trabalho excedente hoje disponível na maioria das famílias mais carentes. Esta terceira linha de ação, além de captar recursos atualmente disponíveis, possibilita que a construção residencial ocorra no ritmo e na forma desejados pela família que nela habitará. Evitar-se-iam os graves inconvenientes resultantes de gigantescos conjuntos residenciais uniformes, bem como o alto volume de poupança financeira e renda familiar exigidos para a aquisição de unidades de projetos residenciais tipo "turn-key".


Finalmente, como quarta sugestão, a desvinculação de duas atividades distintas e que a legislação atualmente vigente confunde na chamada atividade de loteamento, ou seja, a comercialização do lote em si e a colocação de infraestrutura urbana. A atividade imobiliária de parcelamento da área em lotes deve ser restrita tão somente à abertura de vias de acesso e demarcação dos lotes a serem comercializados. A colocação de equipamentos urbanos sanitários como rede elétrica, água, esgoto, pavimentação, etc., deve ser de exclusiva competência dos concessionários e do poder público. Caberia a eles o fornecimento de tais serviços, sendo os custos cobrados diretamente aos usuários. Na situação atual, no entanto, recai sobre os loteadores a responsabilidade desses investimentos.


Comumente, as companhias concessionárias não aceitam a doação do equipamento instalado, ficando as empresas imobiliárias como virtuais "concessionárias" na exploração de tais serviços. E mais, justificadamente, cobram dos adquirentes dos lotes o investimento que seja necessário, acrescido de taxa de administração e de uma margem de lucro. Transferidas essas atividades ao poder público e às suas concessionárias, sem dúvida alguma ocorreria uma queda no preço de lotes populares tornando-os mais acessíveis à população de baixa renda, já que seriam cobrados a preço de custo. Por outro lado, afastado do mercado de construção de conjuntos residenciais populares, o Sistema Financeiro de Habitação liberaria recursos que poderiam ser utilizados diretamente pelas prefeituras e concessionárias para financiamento dos equipamentos urbano-sanitários desde que beneficiassem projetos em loteamentos estritamente populares.


Resumindo-se, a adoção das quatro sugestões acima teria como efeito a utilização mais eficiente de áreas ociosas, encravadas nos perímetros urbanos, aumentando-se a oferta de lotes populares a preço mais baixo que os vigentes. Além disso, o incentivo ao parcelamento do solo em loteamentos populares e a reorientação dos recursos captados pelo poder público para o financiamento de infraestrutura urbana possibilitariam conjuminar os recursos, hoje captados e mal utilizados pelo Sistema Financeiro de Habitação, com os recursos não financeiros ociosos disponíveis a nível de famílias de baixa renda e carentes de moradia.


 

(Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.)



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