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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Uma nova política agrícola no Brasil?

O crédito rural vem sendo, recentemente, o alvo de movimentos preparatórios por parte do governo para o anúncio de importante pacote de medidas que poderá alterar profundamente a política agrícola brasileira. Em grandes linhas pode-se antever a redução ou mesmo a eliminação do crédito rural subsidiado, substancial alteração no sistema do Imposto de Renda nas atividades agrícolas, a manutenção das forças de mercado como determinantes principais dos preços dos produtos agrícolas, com maior apoio governamental às atividades de pesquisa, comercialização e construção de infraestrutura de transportes e armazenamento e, finalmente, existência de programa de preços mínimos fixados de forma a cobrir tão-somente os custos variáveis da produção. Direta ou indiretamente, todos esses pontos foram discutidos em recente seminário promovido pelo Banco Central, por associações de bancos privados e pela Sociedade Nacional da Agricultura, cujo objetivo, nos parece, viria a ser a obtenção de aval das lideranças rurais às intenções da Administração. A alegação básica para a alteração da política agrícola brasileira seriam os elevados custos sociais do modelo hoje vigente e desejo de eliminação da dependência da produção para com o setor público. Deu-se muita ênfase aos custos da política atual, e a tônica geral do encontro foi, sem dúvida, da apresentação de modelos alternativos, sem antes, estranhamente, condenar-se o atual modelo, contrapondo-se os benefícios aos seus custos.


A base da política agrícola brasileira, nos últimos quarenta anos, tem sido o crédito subsidiado e a necessidade de combate à inflação tem provocado forte investida contra o mesmo por parte do governo, do setor financeiro e do setor industrial.


Entretanto, o crédito rural no Brasil pode ser considerado um exemplo de sucesso. A agricultura de hoje é, indubitavelmente, um produto dessa política. Nas últimas décadas constitui uma das poucas constantes no rol das políticas econômicas adotadas no País e qualquer observador de bom senso da agricultura brasileira percebe a importância, a capilaridade e o grande papel indutor do subsídio financeiro na modernização do nosso setor primário.


Foi uma solução para algumas características peculiares da economia brasileira que conseguiu conciliar durante muitos anos a produção com preços comprimidos; o aumento de exportação com a supervalorização do cruzeiro; a relativa modernização da produção com grande escassez de infraestrutura básica e, atualmente, o aumento da oferta agrícola, sem importações, numa economia mergulhada em forte recessão. O crédito rural subsidiado não tem sido uma discriminação gratuita em favor da agricultura. Ao contrário, neutralizou satisfatoriamente uma série de ocorrências impeditivas do crescimento agrícola.


Quem ousaria acusar a agricultura brasileira de ter-se enriquecido à custa de favores governamentais se hoje ela está descapitalizada e dependente do subsídio para continuar produzindo? Nenhuma atividade econômica, essa é a observação do nosso cotidiano, pode ser saudável com taxas de juros reais de 50% ao ano e a eliminação do subsídio — estranhamente ainda insistida por alguns — conduziria o agricultor às invencíveis dificuldades encontradas hoje nos setores secundários e terciários. Deverá também, e a pergunta é oportuna, ser nossa agricultura multinacionalizada?


A crítica importante a ser feita ao crédito rural brasileiro é a forma de seu financiamento, contribuindo para o crescente descontrole do orçamento monetário.


Durante o primeiro semestre de 1982 os fatores de expansão da base monetária chegaram a US$ 935 bilhões. Subsídios creditícios à produção (custeio e investimento) contribuíram com 16,8%, e subsídios à comercialização (preços mínimos e estoque reguladores) contribuíram com 31,9%, perfazendo um total de 48,7% da pressão expansionista do orçamento monetário. Sem dúvida, o crédito rural contribui, embora não sozinho, para a geração de pressões inflacionárias. Mas não podemos descartar o uso desse instrumento, e sim adequá-lo à nossa política monetária. Daí a necessidade da explicitação mais abrangente do montante dos subsídios creditícios no orçamento fiscal da União. No momento, somente pequena parcela provém do orçamento fiscal, provocando, assim, pressões no orçamento monetário para a geração de fundos necessários à recomposição do volume de crédito absorvido pelo setor agrícola. No momento em que recursos fiscais forem apropriados especificamente ao crédito rural subsidiado, ele passará a ser importante instrumento de política econômica, deixando de se caracterizar como elemento aleatório e o perturbador do equilíbrio monetário brasileiro. Persiste, evidentemente, o problema da obtenção dos recursos necessários. A simples transferência do orçamento monetário para o orçamento fiscal não gera recursos. Ela simplesmente evidencia a intenção de substituir o imposto inflacionário pelo imposto explícito, o que torna indispensável o equacionamento dos recursos fiscais às suas novas exigências. Em primeiro lugar, é importante salientar que o subsídio a uma determinada atividade justifica-se por si mesmo no momento em que se evidenciam as vantagens, para a sociedade como um todo, dos resultados pelo setor favorecido. Essas vantagens aparecem à simples análise do desempenho da agricultura brasileira. O setor agrícola hoje descapitalizado e dependente, repassou à sociedade todos os subsídios e incentivos recebidos, nada ou quase nada retendo para si. Desta forma justifica-se a alocação de recursos fiscais em função das novas exigências do setor. No momento em que se debate a reforma fiscal no Brasil é pertinente uma discussão específica das necessidades do setor agrícola brasileiro.


Paralelamente, é importante termos em mente que não existe no Brasil mecanismo de captação de recursos do setor agropecuário especificamente orientado para sua própria realimentação. A experiência de vários países nos demonstra que o potencial existe e que deve ser explorado. Atualmente, recursos gerados no setor agropecuário são absorvidos pelos circuitos financeiros e, estes, pouco ou nenhum interesse têm em aplicá-los de volta ao setor originário. São transferidos para fora do setor recursos que, embora não dimensionados, viriam por certo constituir fontes importantes para o financiamento da atividade primária no Brasil. O essencial para o sucesso deste tipo de iniciativa é a percepção do agricultor de que os recursos gerados por ele reverterão em seu próprio benefício de forma próxima, explícita e inequívoca. Neste sentido não seria recomendável a criação de grandes fundos nacionais como o BNH, PIS, PASEP ou o IBC.


A prática nos mostra que os objetivos de iniciativas como as citadas acima são logo desvirtuados, distanciando-se rapidamente dos objetos primários que justificaram sua criação. Antes seriam preferíveis iniciativas regionais, até mesmo locais, o que certamente traria credibilidade, hoje tão carente em nossa estrutura governamental. Esperamos que a recém-anunciada intenção de criação do Recibo de Depósito Rural contenha elementos que façam do agricultor um interessado direto no crescimento desse sistema de captação. O debate da política agrícola brasileira está, a partir de agora, oficialmente aberto. Em seu primeiro episódio, uma lição deve ter sido aprendida: o setor interessado não avalizou a posição previamente assumida pelo Governo. Seus representantes oficiais quiseram convencer a todos e, quem sabe, a si mesmos, que o encontro endossou a tese da redução gradual do crédito rural, mas na realidade isso não ocorreu.


 

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor do Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.


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