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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Uma sugestão para a política habitacional



A casa própria é a mais eloquente afirmação da propriedade privada como instituição econômico-social. Ela consolida o sentimento da posse individual mais do que qualquer outra propriedade. Assim, ela é a pedra lapidar do sistema capitalista. O enfraquecimento do "drive" de obtenção da casa própria induz à ruptura das estruturas do sistema capitalista e o enfraquece em sua própria base. Quando um indivíduo perde a esperança de conseguir a propriedade de sua habitação, ele está perdendo a convicção nas vantagens do sistema, e passa a encarar a propriedade como um privilégio de alguns e não como um direito de todos.


Em todas as economias onde a propriedade privada, em maior ou menor grau, seja a forma de organização econômica preponderante, o problema habitacional recebe a mais alta prioridade da sociedade e do governo. Mais do que qualquer outro fato, mais do que qualquer ideologia por mais antagônica que possa ser, mais do que qualquer movimento político possa conseguir, a impossibilidade de o brasileiro de baixa renda ter a sua casa está contribuindo para a erosão de nossas instituições, e o impele a invadir a propriedade alheia, seja ela pública ou de indivíduos, e ali fixar sua moradia em flagrante desafio à ordem institucional vigente.


Flagrante desafio à ordem institucional, também, é a falha da sociedade em garantir habitação digna a todos os brasileiros. A política habitacional brasileira, desde 1964, tem sido gerida pelo Banco Nacional da Habitação, órgão responsável pelo Sistema Financeiro da Habitação. Em programas de maior interesse social, como os orientados para as camadas populacionais de baixa renda, o BNH atua diretamente, além de comandar obras de infraestrutura básica e serviços como sistemas de abastecimento de água, esgotos, equipamentos sociais e apoio à indústria de materiais de construção. Nos demais, o BNH regula a atuação do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, composto pelas Caixas Econômicas, Associações de Poupança e Empréstimo e Sociedades de Crédito Imobiliário.


A tarefa de eliminar o déficit habitacional brasileiro, no entanto, é bem maior que as possibilidades desses órgãos. Segundo estimativas do BNH, o déficit habitacional brasileiro é de mais de 7 milhões de unidades, sendo 5 milhões representados por novas moradias e 2 milhões, pela reposição de unidades existentes. A maior parte desse déficit, estimado para o período de 1980-1985, se situa na população cuja renda atinge de zero a três salários mínimos. Estimativas da Associação Profissional das Empresas de Loteamentos do Estado de São Paulo situam o déficit habitacional somente nos aglomerados metropolitanos de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, em 10 milhões, nas próximas 15 anos. A tarefa é imensa e os recursos são escassos. Entre 1970 e 1980, período de grande atividade do Sistema Financeiro da Habitação, presume-se que somente 2 milhões de unidades tenham sido financiadas; para 1983, os agentes financeiros do BNH deverão investir na construção de somente 180 mil unidades, sendo que grande parte das mesmas, em projetos para as camadas de renda média.


Os projetos orientados para aqueles mais duramente atingidos pelo déficit habitacional são em número insuficiente. Do orçamento do BNH para 1983, estimado em torno de Cr$ 1,15 trilhão, menos de 10% será canalizado para o Promorar, Programa de Substituição das Subabitações; a Cohab de São Paulo, que tem, no momento, uma fila de espera de 350 mil famílias e que aumenta a uma média de 6 mil famílias por mês, só conseguiu construir 95 mil unidades em toda sua existência, sendo 85 mil entre 1975 e 1978 e somente 10 mil nos últimos quatro anos. A magnitude do problema é avassaladora e exige determinação da sociedade para enfrentá-lo.


É cristalino, contudo, que duas premissas deverão ser aceitas. Primeiro, que tanto o governo quanto o setor privado deverão ser convocados para a solução do problema; e, segundo, que os recursos disponíveis deverão ser aplicados de forma a atender ao maior número de cidadãos carentes de moradia. A participação governamental tem apresentado um caráter essencialmente normativo, nos últimos 15 anos. Embora o BNH, órgão responsável pela execução da política habitacional brasileira, atue como Banco Central do Sistema Financeiro da Habitação, ele intervém diretamente em alguns programas de interesse social, com recursos oriundos dos depósitos do Fundo de Garantia. Indiretamente, via seus agentes financeiros, financia parcela ponderável do espaço de construção residencial no Brasil. Até agora, o Sistema Financeiro da Habitação financiou somente uma quarta parte do total de novas moradias construídas na década de 80. Os recursos para as três quartas partes restantes ficaram a cargo da iniciativa privada e do esforço individual de autoconstrução. Esta última modalidade está de tal forma incorporada à realidade brasileira que, no Rio de Janeiro, dois terços do total de aquisições são feitos dentro dessa modalidade, segundo exposição de motivos feita pelo ministro Hélio Beltrão, ao isentá-las da contribuição ao INSS.

É necessário, portanto, possibilitar ao máximo a atuação de todos os segmentos envolvidos no processo de construção residencial, não alijando do processo a alternativa habitacional da compra do lote e da posterior edificação individual da moradia. Esta alternativa tem a vantagem de não exigir um alto nível de poupança financeira, hoje inexistente nas camadas populacionais de baixa renda, em face da alternativa apresentada pela aquisição do pacote oferecido pelos conjuntos habitacionais. Ao mesmo tempo, ela possibilita a utilização de recursos de mão-de-obra, hoje ociosos, não exigindo recursos financeiros para a cobertura desse importante item de custo da habitação.


A segunda premissa a ser aceita é que, sendo os recursos escassos, há necessidade de maximização de seus efeitos, de forma a se atender, com o mínimo essencial, ao maior número possível de indivíduos carentes de habitação. O financiamento médio do Sistema Financeiro de Habitação esteve até agora em aproximadamente 2.500 UPCs. Uma residência, casa ou apartamento, do padrão Cohab voltado para atendimento da população de baixa renda, tem um custo de aproximadamente 180 UPCs; uma casa em projeto de quarto, cozinha e banheiro com 7.3 metros quadrados, alia 78 UPCs; e um lote residencial urbanizado 110 UPCs. Nota-se, portanto, que devido à estrutura piramidal dessas opções habitacionais, o financiamento médio do Sistema Financeiro de Habitação, para gerar uma unidade habitacional, deixa de gerar unidades residenciais de padrão popular para três famílias, ou casas de quarto para oito famílias, ou lotes urbanizados para 14 famílias.


Também, ao nível da iniciativa privada, os planos urbanísticos e os códigos de obras municipais são igualmente elitistas, impedindo o atendimento às necessidades da população de baixa renda; que, como única alternativa, se amontoam ou se estabelecem em cortiços de condições anti-higiênicas, insalubres e de total promiscuidade. Dificuldades de toda ordem são impostas à atividade do parcelamento do solo, como já tivemos oportunidade de relatar em artigos publicados pela "Folha", em 8 de novembro e 6 de dezembro de 1981. Além de dificuldades burocráticas e de exigências elitistas, não é permitido ao loteamento, como a todas atividades imobiliárias, operações financeiras com garantias oriundas de suas próprias vendas. A resolução 386 do Banco Central impede, deste modo, que essas empresas descontem os títulos gerados por suas vendas, criando enorme pressão sobre a capacidade de capitalização das mesmas. A atividade de parcelamento de solo deveria, ao menos, ter um tratamento semelhante a seus congêneres construtores e incorporadores que contam com uma legislação bem menos restritiva e com recursos do Sistema Financeiro da Habitação relativamente bem mais abundantes. Caso contrário, as classes de baixa renda, aquelas que exigem prazos mais longos de financiamento, é que terão de sofrer as consequências de reduções de oferta e, consequentemente, transferência de recursos para empreendimentos voltados às camadas de renda mais elevada.


Aceitas essas duas premissas, torna-se necessária a adoção de algumas medidas que, em nosso entender, poderiam contribuir para a solução do problema habitacional brasileiro:


a) Incrementar a produção de habitações de interesse social, incentivando a alternativa dos "dois estágios": primeiro, a compra de lote urbanizado e, depois, a edificação. Isso poderia ser feito mediante a desburocratização e a deselitização dos corpos legislativos que regem o parcelamento do solo, como a criação do "lote popular", de 125 metros quadrados com infraestrutura mínima essencial, a exemplo do que foi levado a efeito no município de São Paulo (mas infelizmente ainda inoperante devido à incompatibilidade com a legislação estadual); a dinamização dos programas do Sistema Financeiro da Habitação que iterem fontes de financiamentos para essas atividades, tais como o Ficam, Profilurb, Cicap, Proáreas e outros que possam vir a ser criados, lembrando que o financiamento dos "dois estágios", em torno de 400 a 450 UPCs é, aproximadamente, seis vezes menor que o financiamento médio agora concedido;


b) Instituir uma rede de distribuidores de materiais essenciais de construção a preços vantajosos, a exemplo da rede Somar, apoiados por programas do tipo Econ. Isso incentivaria a construção individual, inclusive a autoconstrução da casa, embrionária com cômodos indispensáveis que vão sendo ampliados, na medida das necessidades de cada família;


c) Liberar o FGTS e as cotas do PIS-Pasep para a compra de lote urbanizado e cobertura dos custos de construção individual, inclusive autoconstrução;


d) Permitir às sociedades de crédito imobiliário que obtenham recursos externos, através da resolução 63, do Banco Central; como justificado por representantes da indústria de construção civil e de agentes financeiros do BNH, essa linha de crédito seria destinada, exclusivamente, para financiamentos de unidades da chamada "faixa especial", liberando os recursos das cadernetas de poupança, para aplicação nas faixas habitacionais de menor custo;


e) Possibilitar no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação o desconto de títulos gerados nas operações de vendas, por parte de empresas do setor imobiliário, amenizando os problemas de capital de giro oriundos dessa proibição.



Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque é professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e Presidente da Associação Profissional d as Empresas d e Loteamentos do Estado de São Paulo (AELO-SP).



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