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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

O impasse da dívida pública


Subitamente, a hiperinflação passou a ser discutida abertamente, fora dos colóquios acadêmicos. A inflação de junho contribuiu para acirrar as expectativas mais pessimistas acerca da perda de controle sobre o processo inflacionário. Passou-se a questionar a capacidade do governo de honrar o serviço de sua dívida - interna e externa; avaliam-se as possibilidades de que a inflação seja estabilizada em altos patamares como os atuais, na maioria das vezes concluindo-se pela negativa, apesar do colchão amortecedor representado pela indexação; notam-se preocupantes movimentos na direção de ativos reais, como imóveis e ouro, sem falar nas altas persistentes do dólar no mercado paralelo. O clima de incertezas e desconfiança motivado por um governo fraco completa um cenário adequado para a hiperinflação.


Curiosamente, ninguém arrisca previsões sobre o "timing" desse iminente desastre. Em outras economias, a concretização da crise hiperinflacionária seria imediata, mas no Brasil, a correção monetária dos ativos financeiros e a indexação de preços e salários fazem com que o desenrolar dos fatos siga uma trajetória diferente das de outras experiências históricas.


Mas, apesar de tudo, não há como negar que a gestação de uma crise hiperinflacionária foi precipitada com as derrotas sofridas pelas autoridades no controle dos gastos públicos. Some-se a isso a incapacidade da equipe econômica em compatibilizar uma renegociação da dívida externa capaz de, ao mesmo tempo, restaurar as relações com a comunidade financeira internacional e, também, obter alívio nas remessas de divisas ao exterior por conta do endividamento externo brasileiro. Todos esses fatos se acumulam numa evolução altamente preocupante da dívida pública brasileira.


A dívida mobiliária da União em poder do público vem sofrendo variações reais anuais que em média atingiram cerca de 30%, desde outubro do ano passado. Isso significa que a dívida, neste ritmo, irá dobrar a cada dois anos e oito meses; em junho, a taxa anual de expansão real foi de 52%, o que implica dobrar em menos de dois anos.


A dívida líquida do setor público, segundo dados do Banco Central, evolui perigosamente. Realimentada pelos déficits anuais, ela atinge proporções críticas. Ainda não é excessivamente alta (como proporção do PIB), tomando-se por base a experiência de outros países. Porém, sua rolagem é dificultada pela correção monetária incidente sobre ela - fato que não ocorre em outras economias - e também por seu perfil de curtíssimo prazo, praticamente imediato. Além disso, mostra-se crescente.


Demonstrar essa bomba de efeito não tão retardado é o caminho para evitar a hiperinflação que se aproxima. A primeira providência seria seccionar os mecanismos de realimentação. O controle do déficit público - cujo reverso é o controle da aceleração inflacionária - torna-se assim prioritário, porém de parcas perspectivas de êxito, dados os condicionantes políticos da "Nova República". Corroer o valor da dívida pública por meio de inflação como fazem os países sem indexação também é impraticável; apenas precipitaria o golpe fatal contra a moeda corrente (os títulos que lastreiam o overnight).


Urge cortar o déficit público para conter a expansão da dívida. Mas isso poderá não ser suficiente, pois é preciso reduzir, e não apenas estabilizar, a relação dívida/PIB. A emissão de títulos públicos certamente exigirá taxas de juros reais positivas. O financiamento a custo zero, pelo uso das LBC/LFT, apenas se torna viável mediante a aceitação, pelo governo, de rolagens diárias, circunstâncias nas quais os riscos de uma crise de confiança e de uma hiperinflação passarão a fazer parte do cotidiano brasileiro.


Uma política para a dívida pública torna-se assim imperiosa. Em primeiro lugar, urge implementar uma efetiva política antiinflacionária capaz de reduzir o déficit nominal. Cabe lembrar que o governo financia sua dívida nominal e não a operacional. Esta última é apenas uma medida de aperto fiscal, mas não é a variável mais relevante para a definição de uma política para a dívida pública. Cabe lembrar que, em 1986, o fluxo acumulado da dívida tária e cambial, representou 22% do total, que inclui as correções monetárias. Em termos de saldos médios da dívida, os fluxos representaram cerca de 45% do PIB nos dois últimos anos, devendo aumentar substancialmente em 1988.


Supondo-se, como exemplo, que o déficit operacional seja zerado - uma meta extremamente difícil pelos efeitos perniciosos da própria inflação nas receitas públicas - ainda assim a relação dívida/PIB poderá aumentar. Na hipótese (provável) de rolagem integral, bastaria que, em termos reais, as taxas de juros superassem o crescimento do produto. Sabendo-se ainda que a manutenção da inflação em elevados patamares reduz a capacidade de arrecadação pública, nota-se que o governo poderá ser forçado ao endividamento crescente, também por conta da correção monetária. Em suma, as evidências apontam para novas dificuldades na questão do endividamento público no Brasil.


Para reduzir a relação dívida/PIB, há que se introduzir novas possibilidades no mix de políticas econômicas do governo. Duas possibilidades deveriam ser consideradas: um imposto especial para permitir o serviço da dívida e um radical programa de conversão de dívida em estatais.


Em relação à primeira proposta, cabe dizer que não se deve alimentar ilusões, pois todos pagarão a dívida acumulada, seja pelo imposto inflacionário, seja pela sua desvalorização, no caso de uma crise hiperinflacionária. A imposição de um imposto especial poderá conferir maior racionalidade ao processo de resolução deste impasse, principalmente por implicar um planejamento mais adequado da incidência deste tributo.


A conversão da dívida - interna e externa - em estatais significa patrimônio. Não apenas se estaria aliviando as pressões da dívida no orçamento público, mas ainda permitiria contornar o déficit oriundo das empresas estatais. É uma alternativa mais racional do que a paulatina dilapidação das empresas públicas praticada nos últimos anos. Os cortes indiscriminados de gastos e as limitações aos investimentos impostos às estatais poderão resultar em breve no estrangulamento da oferta de bens e serviços, hoje controlados pelo governo, com óbvias repercussões na capacidade de expressão da economia.


São problemas imediatos, que exigem respostas urgentes.




 

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 41, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), é diretor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e consultor econômico da Folha.


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