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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

O risco de hiperinflação

O temor de que se repita no Brasil o que acontece na Argentina não deve ser descartado. Pelo contrário, as condições objetivas da evolução da economia brasileira apontam no sentido de colocar em posição todas as condições necessárias para uma crise hiperinflacionária.


É certo que, do ponto de vista estrutural, o Brasil é bastante diferente da Argentina. Lá, o processo de desintegração econômica é muito mais antigo; o setor industrial brasileiro é indubitavelmente mais dinâmico e mais moderno; o mercado interno e o crescimento da demanda nos dois países não podem ser comparados. Todas essas características estruturais mostram que Brasil e Argentina são economias distintas, com diferenças significativas em seu potencial de expansão. Contudo, são diferenças que em pouco auxiliam na avaliação dos riscos de hiperinflação nestes dois países.


No Brasil e na Argentina, a hiperinflação não desponta pelo lado da demanda; nem pelo lado das pressões de custos. Vem, fundamentalmente, da desconfiança no padrão monetário em uso. A perda de confiança na solvência do setor público é o fator que poderá detonar uma corrida contra a moeda, ou contra a quase-moeda - que no Brasil é o estoque de títulos públicos indexados. E em ambos os países o processo é muito semelhante. Trata-se de um fenômeno de massas, de cunho essencialmente psicológico, e que poderá ser detonado abruptamente, sem sinais evidentes que indiquem a iminência, ou não, de sua ocorrência.



A grande questão, do ponto de vista de um indivíduo, é poder se antecipar aos demais agentes econômicos e se livrar da moeda, ou da quase-moeda, antes que virem pó. No momento, já se nota uma certa resistência dos aplicadores financeiros em aumentar sua "exposure" ao risco LFT. A colocação de títulos governamentais ocorre com deságio crescente; os dados do Banco Central referentes a maio mostram que o governo estava sobrevendido no mercado. Em outras palavras, não havia reservas no sistema para carregar o estoque de títulos vendidos ao público. Daí a necessidade de volumosas injeções de dinheiro, o que significou uma expansão monetária em maio de cerca de 23%.


A reinflação no Brasil está ocorrendo a uma taxa extraordinariamente elevada. O índice de preços está aumentando cerca de 50%, ou mais, ao mês. Também na Argentina isso ocorreu. Em janeiro e fevereiro, a inflação estava em cerca de 10%, e em apenas 90 dias chegou a cerca de 100%. Este fenômeno é ainda mais preocupante ao se notar que ainda existem grandes correções de preços relativos a serem feitas nas próximas semanas. Nas experiências anteriores de estabilização, as correções de preços relativos ocorridas após a liberação de preços foram feitas em níveis de aceleração inflacionária sensivelmente mais baixos.


Nota-se ainda que o Brasil se mostra incapaz de efetuar qualquer avanço no seu ajuste fiscal e que as condições de solvência externa acham-se ameaçadas pela inexistência de um plano consistente de estabilização interna. Completando este quadro negativo que muitos analistas se recusam a externar - certamente imbuidos de um duvidoso espírito público que aconselha não tocar em questões que poderão deflagrar eventos indesejados -, nota-se uma crescente intranquilidade em relação à política a ser adotada pelo próximo presidente. Embora não se conheçam propostas ou planos de governo, sabe-se que qualquer que seja o eleito, ele se verá forçado logo no início da gestão a atacar de frente os espinhosos problemas da dívida interna. Se será uma desvalorização do estoque da dívida - como feito no Plano Verão -, renegociação, alongamento de prazos, ou uma conversão em ativos patrimoniais do setor público, pouco se sabe. Mas que mudanças na política da dívida pública deverão ocorrer parece ser bastante provável.


O pior que pode acontecer é um acordo tácito que tenha como única meta jogar o problema para a frente, se limitando a tentar chegar sem maiores traumas às eleições de novembro. Com os candidatos que postulam a prudência, o que esperar de 1990? Há ganhos nesta estratégia de procrastinação, ou será que os riscos serão magnificados a ponto de gerar no futuro um desenlace ainda mais desagregador das instituições econômicas brasileiras?


O dado fundamental é o seguinte: do ponto de vista do processo inflacionário brasileiro, o conceito relevante de déficit público é o nominal, e não o operacional ou o primário. Estes últimos medem mais adequadamente o impacto da contração fiscal na demanda agregada. Como a inflação brasileira tem origem no endividamento financeiro do setor público, a atenção deve ser concentrada na capacidade do governo financiar seu déficit nominal. Este situou-se no ano passado em cerca de 50% do PIB. Em contrapartida, a carga tributária líquida no Brasil é de 10% do PIB. Assim, qualquer desequilíbrio ou queda na propensão do setor privado a financiar o déficit público nominal significará de pronto a necessidade de monetização da dívida. Cabe acrescentar que no momento cerca de metade do déficit operacional do setor público já é financiado por via inflacionária, ou seja, por emissões monetárias.


A única saída está no ajustamento fiscal imediato, num radical programa de privatização, no redimensionamento do setor público, na recuperação das receitas tributárias (a sonegação atinge 50% da arrecadação), num Banco Central independente. Enfim, numa mudança drástica do regime monetário-fiscal. O resto é "wishful thinking".


 

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 43, doutor pela Universidade de Harvard (EUA), é diretor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e consultor acadêmico da Folha.


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