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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Expurgo de índices e inflação

No último domingo, dia 21 de fevereiro, no caderno Finanças desta Folha, o jornalista Aloysio Biondi defendeu um expurgo nos índices que apuram a inflação brasileira. Ele está absolutamente correto. Com transparência e lisura, o expurgo poderá reduzir sensivelmente as pressões inflacionárias no Brasil, já que uma boa parte delas decorre exclusivamente da forma errada como os índices de inflação são medidos, interpretados e posteriormente utilizados pelos agentes econômicos e pelo governo.


A indexação quase universal, como ocorre no Brasil, encontra justificativa na busca de cada setor, ou segmento econômico, de proteção contra os aumentos de preços e, consequentemente, contra os efeitos do conflito distributivo gerado pela inflação. Mas ao se indexar todos os preços aos índices de inflação, criam-se pressões inflacionárias fortes que realimentam a espiral de preços, tornando-a "tendencial para cima".


A indexação no Brasil chegou a tal deformação que, por exemplo, aumentos sazonais ou acidentais do chuchu ou da lingerie afetam no mês seguinte o retorno das aplicações financeiras e o preço do aço, da energia e dos combustíveis. É evidente, portanto, que nestas circunstâncias não apenas o uso, mas também os métodos de apuração dos índices de inflação precisam ser rigorosamente revisados para se evitar processos espúrios e injustificados de realimentação inflacionária.


Há que se distinguir com muita clareza a diferença entre um "índice de preços" e um "indexador". São coisas diferentes.


Índices de preços, nas suas mais variadas formas, como índices de custos de vida, de preços por atacado, de custos industriais ou qualquer outro tipo, são indicadores destituídos de qualquer conotação valorativa. Eles apenas medem a evolução de preços e não embutem qualquer avaliação acerca de impactos redistributivos de renda. Não mostram quem ganha, quem perde, nem qual a compensação de renda necessária para manter padrões constantes de utilidade ou de lucros.



Indexadores, por outro lado, são usados para repor perdas e recuperar o padrão redistributivo anterior. Nesse sentido, ele precisa refletir as variações de renda real dos agentes econômicos decorrentes da inflação, bem como os padrões de comportamento induzidos pelo próprio processo inflacionário.


Por exemplo, um consumidor muda seu padrão de consumo quando os preços dos produtos se alteram. Passa a consumir quantidades menores dos produtos cujos preços se tornaram relativamente mais caros, e vice-versa. Para manter o mesmo nível de utilidade que tinha antes dos aumentos de preços, ele precisará ser compensado com um acréscimo de renda.


Porém, o aumento percentual de renda certamente não precisaria ser o mesmo indicado pelo índice de inflação. Se a renda aumenta na mesma proporção indicada pela inflação, o consumidor acabará recebendo uma compensação provavelmente acima da necessária para recuperar o patamar anterior de utilidade e de bem-estar. O consumidor se ajusta aos novos preços e, em parte, compensa os impactos da inflação mediante alterações no seu perfil de consumo. Mesmo que a renda lhe seja aumentada exatamente pelo índice inflacionário, o consumidor não retornará ao padrão de consumo anterior ao aumento de preços. Ele altera sua cesta de consumo e, com isso, acaba obtendo níveis de utilidade mais altos do que antes.



Em realidade, estas observações apenas comprovam a sensação muito comum de que se os salários fossem corrigidos plenamente pela inflação, estaria havendo um aumento de poder aquisitivo; ou, de que a caderneta de poupança, sem truques ou confiscos, é um bom negócio.


O mesmo ocorre com a produção. O preço de um produto não precisa aumentar de acordo com um índice de preços industriais, pois o produtor substituirá os insumos que encareceram por outros que se tornaram relativamente mais baratos, a não ser que os índices de preços reflitam "pari passu" as alterações nas combinações de insumos e fatores utilizados. Ou que a substituição de insumos na produção não seja possível.



Assim, toda vez que a compensação (salarial ou nos preços de produtos) acompanhar respectivamente a evolução dos preços ao consumidor ou dos preços industriais, estará havendo uma sobrecompensação, que certamente realimentará o próximo índice de preços, e consequentemente fomentará novos surtos inflacionários.


O indexador precisa ser ajustado para refletir os padrões comportamentais dos agentes econômicos ao reagirem à própria inflação. Não se trata de expurgo, mas sim de ajustes capazes de garantir que as compensações não se transformem em prêmios, evitando-se assim uma lamentável relação de cumplicidade com a inflação.



Particularmente preocupante é o impacto do uso errôneo dos indexadores na formação das taxas de juros. O investidor acaba recebendo uma sobrecompensação para abrir mão de sua liquidez. O impacto dos juros na produção amplifica os efeitos realimentadores na inflação.


Mas outras razões também exigem a revisão metodológica dos índices de inflação.


Por exemplo, acidentalidades e sazonalidades precisam ser identificadas e expurgadas dos indexadores em uma economia inflacionária para evitar que contaminem outros preços que apenas remotamente sofrem influências recíprocas. Mas não precisam ser expurgadas dos índices de custo de vida ao consumidor, ou de outros indicadores inflacionários; apenas devem ser tiradas dos indexadores.


Há ainda o "efeito Kanitz". Teoricamente, as pesquisas de preços no Brasil captam preços "à vista". Porém, na prática, o mercado concede prazos de pagamento (30 dias, 60 dias etc.). Por isso, o preço "à vista" embute custos financeiros. Assim, quando a inflação sobe, a medição dos preços embute também os aumentos dos juros nominais, e a inflação é superestimada, e vice-versa.


A indexação no Brasil foi uma defesa natural contra os efeitos da inflação. Porém, seu uso de forma indiscriminada e tecnicamente incorreta tornou-se mais do que uma causa da inércia; transformou-se também em fator de aceleração, ainda que sutilmente disfarçado em inocente "reposição de perdas".




MARCOS CINTRA CAVALECANTI DE ALBUQUERQUE, 47, Economista pela Universidade Harvard, professor da Fundação Getulio Vargas.






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