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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Os bônus da avenida Faria Lima

Os gastos públicos municipais são tradicionalmente financiados com arrecadação de impostos e empréstimos, internos e externos.


No Brasil de hoje, contudo, essas fontes são incapazes de gerar recursos suficientes para atender à demanda social por bens públicos. A recessão reduz a arrecadação tributária, e a inflação inviabiliza a continuidade das operações de crédito de longo prazo.


O desafio, portanto, é encontrar formas de financiamento para os investimentos públicos, geralmente os primeiros a serem cortados e os últimos a serem retomados. Na impossibilidade de recorrer às fontes tradicionais, é preciso buscar alternativas.


A proposta de securitização de direitos de construir, anunciada recentemente pelo prefeito Paulo Maluf, é um mecanismo inovador em todo o mundo e poderá servir de modelo e paradigma para o financiamento de investimentos públicos em situações de grave escassez de recursos, como ocorre agora no país.


O conceito é simples. Transferências tributárias do setor privado para o setor público devem produzir retornos sociais positivos quando transformadas em gastos de custeio ou de investimento. A sociedade recebe de volta, na forma de serviços públicos, os recursos que transfere ao governo.


Mas os gastos públicos geram impactos nos vários segmentos do mercado privado. Quando efetuados nas áreas sociais como educação e saúde, repercutem no mercado de trabalho e na taxa de salários. Quando na infraestrutura urbana, repercutem nos preços do mercado imobiliário, nos preços da terra e nas áreas locacionais.


Em outras palavras, os gastos públicos geram rendas que são frequentemente apropriadas por segmentos privados. Trata-se de um caso de flagrante externalidade, na medida em que o governo efetua gastos com recursos transferidos da coletividade, mas cujos benefícios acabam sendo absorvidos de forma diferenciada pelos vários segmentos privados.


A valorização imobiliária é o caso mais típico desse fenômeno. O governo investe em obras viárias e de infraestrutura urbana com recursos arrecadados de toda a comunidade. Mas a valorização beneficia apenas os proprietários localizados na área de influência direta dos investimentos públicos. E para casos como esse que a Constituição permite cobrança da contribuição de melhoria, que busca extrair para o setor público as diferenças geradas pelos investimentos governamentais. Na prática, contudo, a cobrança da contribuição de melhoria vem encontrando dificuldades operacionais insuperáveis.


Os Bônus de Valor Agregado, rebatizados de Certificados de Potencial Construtivo, poderão resolver os dois problemas levantados acima: fornecer recursos para o financiamento não-tributário dos gastos públicos e absorver para o setor público parte da renda diferencial gerada por seus investimentos e absorvida por segmentos específicos do setor privado.


Aumentos de impostos são rejeitados pela população, não sendo, portanto, alternativa politicamente viável para financiar novos investimentos. Fora a recessão, ainda há descrença da população quanto à correta definição de prioridades nos gastos públicos.


Contudo, se houvesse a certeza de que os recursos transferidos são utilizados para equipamentos públicos capazes de gerar externalidades privadas positivas, tornaria-se possível a arrecadação de "tributos voluntários" dos segmentos econômicos diretamente beneficiados.


O Certificado de Potencial Construtivo é um instrumento de arrecadação voluntária. Incorpora apenas mecanismos de mercado, sem qualquer conotação impositiva. E permite não apenas a absorção de parte dos benefícios dos investimentos governamentais para a comunidade como um todo, mas também permite a antecipação de recursos com os quais se poderiam financiar as obras geradoras dos fluxos futuros de benefícios públicos e privados.


O governo pode autorizar direitos de construção adicionais aos definidos pelas leis de zoneamento. Isso já ocorre nas chamadas "operações interligadas" e as "operações urbanas". Quase todos os países mais avançados em matéria de planejamento urbano já praticam esse tipo de transação, que conta com um grande número de variantes. Permite-se mais do que a legislação normal mediante a cobrança de uma contrapartida em benefício da comunidade.


Os Certificados de Potencial Construtivo cujos fundamentos foram primeiramente propostos por Milton Campanario incorporam direitos adicionais de construção. Na medida em que os recursos captados pela venda desses títulos estejam vinculados por lei a determinados investimentos, o mercado atribuirá valor a eles na exata proporção do fluxo de benefícios futuros privados que os investimentos públicos irão gerar. Os recursos para financiar os investimentos públicos são arrecadados antecipadamente, a custo zero. E ainda se compartilham com os setores beneficiados os ganhos gerados pelos melhoramentos públicos.


Ao mesmo tempo, o caixa da prefeitura não sofre qualquer pressão, permitindo a continuidade dos planos de gastos nas áreas sociais, sem qualquer desvio de prioridades. Pode-se mesmo antever a utilização dos Certificados de Potencial Construtivo no financiamento de obras já incluídas no orçamento, o que permitiria a liberação de verbas para novos investimentos nas áreas de saúde, educação, saneamento e habitação.


Os certificados ainda proporcionarão vantagens adicionais. Serão vendidos ao público em geral, embora apenas poderão ser convertidos em direitos de construir dentro das áreas definidas por lei para a operação urbana. Serão também utilizados como um prêmio a ser concedido aos desapropriados, além do justo valor de mercado de seus imóveis. Essa compensação adicional fará com que o desapropriado continue parceiro, juntamente com seus antigos vizinhos, na valorização imobiliária que os investimentos públicos deverão gerar na área de intervenção.


Pretende-se ainda utilizá-los como moeda para o pagamento de obras aos empreiteiros.


Os Certificados de Potencial Construtivo serão transacionados livremente no mercado. Espera-se que sejam negociados em Bolsas de commodities, o que garantirá ao título grande liquidez e transparência na formação de preços. Desapropriados, empreiteiros, incorporadores e investidores em geral estarão de posse de um título com liquidez, lastreado em valores imobiliários que são sabidamente sólidos e de grande potencial de valorização. E ao mesmo tempo estarão financiando ações de interesse social.


E tudo isso sem que o passivo financeiro da prefeitura sofra qualquer acréscimo. Os Certificados de Potencial Construtivo não têm valor de face, não têm prazo de vencimento, não representam endividamento, e seu resgate ocorrerá em troca de permissão de construir.


São Paulo parou por falta de criatividade. Enquanto outras cidades no mundo se beneficiam de novas formas de financiamento, nossa engenharia financeira pública se limitou a medíocres tentativas de aumento de impostos. Esse caminho está esgotado.


Os Certificados de Potencial Construtivo abrem amplas e inexploradas perspectivas. Não só na Faria Lima, mas em outras regiões da cidade, ansiosas por receber benefícios públicos.




MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE é secretário do Planejamento de São Paulo, doutor em economia pela Universidade de Harvard (EUA) e professor titular da Fundação Getulio Vargas (SP).

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