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  • Marcos Cintra

Fome: desafio nacional

A miséria, a face mais perversa da crise econômica, pode ser encontrada hoje no Brasil, não só nas regiões flageladas pela seca, mas também nas esquinas dos centros urbanos. Sua tradição está nos rostos magros, marcados pela fome, uma "doença" social crescente na vida dos brasileiros, relegada ao segundo plano pelos políticos e governantes de várias gerações.


Precisou acontecer a cruel soma de uma longa recessão com a descrença política para impor condições para o surgimento do Programa de Combate à Fome e à Miséria, liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, cidadão brasileiro de inegáveis méritos.


Apesar de ser incensado por aqueles que não resistem a um mártir - afinal, ele é uma personalidade cantada em música, primeiro vítima da repressão e, hoje, da aids - Betinho deixou bem claro, desde o começo, que a campanha contra a fome se dividia em duas fases: a emergencial e a estrutural.


A fome não sairá da vida brasileira apenas com a doação de alimentos, disso ninguém duvida. Mas a parte emergencial tornou-se crítica, até por uma questão de sobrevivência para muitos. A fome não espera e causa danos físicos e mentais, comprovados em várias pesquisas científicas. Betinho sabe disso e colocou mãos à obra, com a participação jamais negada pelo sensível povo brasileiro.


Entretanto, a parte estrutural não pode ser deixada de lado, no sonho de que, de um dia para o outro, problemas graves como a concentração de renda e de poder serão resolvidos com um passe de mágica. Modificar as estruturas arcaicas do país não exige um esforço impossível, mas sim um trabalho árduo, no qual a pedra de toque é a seriedade.


A seriedade é básica para que, respeitando os princípios fundamentais da democracia, os deputados federais e os senadores tenham dado início à revisão constitucional lamentavelmente aprovada para começar neste mês de outubro. Uma revisão prematura, sem que se ouça a sociedade, feita por um parlamento não escolhido para essa relevante atribuição. E o pior. A ser cumprida por um presidente e um Congresso que, em razão dela, poderão enfrentar reais problemas de governabilidade do país.


As definições podem demorar, mas já existem propostas no sentido de reverter o clima de estagnação que se abateu sobre o Brasil nesses últimos meses. O desemprego, a principal preocupação de 51% dos entrevistados em uma recente pesquisa IBOPE/CNI, pode ser enfrentado com programas corajosos que busquem a criação de postos de trabalho. Entre esses está o Programa de Geração de Emprego e Renda (Proger), realizado nos municípios brasileiros com o apoio da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) e do governo federal.


O Proger começa com aulas de teoria da organização, matemática, projeto de investimento, cooperativismo, associativismo e formação de microempresas exclusivamente para desempregados com o segundo grau completo. Esse conhecimento é, depois, repassado às pessoas de destaque nas favelas e comunidades carentes, que transmitem sua experiência teórica e prática à população, criando programas viáveis para as empresas. A Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Planejamento, lançou o Proger com investimentos de US$ 300 mil. Mais do que momentâneas doações, é preciso apostar na capacidade dos brasileiros para que, com seu talento, saiam da crise.


Precisamos evitar que Betinho, um lúcido comandante de uma extremada reação social contra a ineficiência das elites políticas, seja confundido com um eficiente "ministro da Miséria". Ficando assim sozinho com o ônus do combate à pobreza, enquanto os verdadeiros responsáveis se ocupam de questões político-eleitoreiras, do tipo "é dando que se recebe".


Que a esmola, hoje bem-vinda para matar a fome, seja rapidamente substituída pela justa oportunidade de trabalho, pela conquista digna da cidadania.




Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 47, é economista, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), professor da Fundação Getúlio Vargas (SP), Vereador e Secretário do Planejamento e da Privatização e Parceria do Município de São Paulo.



Publicado no Jornal Gazeta de Moema.



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