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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Da âncora cambial para a monetária

A elevação da faixa de variação cambial era inevitável. Com a medida, o governo atenua uma de suas mais profundas preocupações -o temor de uma crise cambial. Mas, por outro lado, enganam-se os que, esperançosos, acreditam que agora o governo poderá relaxar sua política de juros altos.

O volume das reservas era uma fonte permanente de preocupação e, ao mesmo tempo, fator de grande rigidez na política econômica. Com o real fortemente valorizado, as contas externas mantinham-se deficitárias, o que tornava necessário manter as taxas de juros elevadas para atrair capital externo de curto prazo e financiar os desequilíbrios cambiais resultantes.

Além da inevitável contração no nível de atividade econômica, a manutenção do real valorizado fazia o governo perder um grau de liberdade em sua política monetária, pois a taxa de juros tornava-se inflexível para baixo, sob risco de gerar grave crise cambial.

A contra-indicação desta política era o desestímulo aos investimentos, o desemprego e a inadimplência generalizada que se alastrou pela economia. Além disso, a política monetária apertada agrava o déficit público, que voltou a ser um dos itens mais significativos das despesas públicas brasileiras.

A desvalorização cambial, portanto, tornou-se inevitável como mecanismo para permitir maior espaço para a administração da demanda interna via política monetária e, ao mesmo tempo, para garantir ajustes essenciais na balança de pagamentos.

O mecanismo das faixas cambiais adotado pelo governo tem ainda a vantagem de permitir a gradação da desvalorização do real. O mero anúncio da nova faixa não implica imediata desvalorização, mas apenas a abertura de espaço mais amplo para a administração da taxa de câmbio.

Em outras palavras, o instrumento criado é correto e a oportunidade da medida é evidente.

Mas, como em economia existe sempre um ``trade-off", cumpre explicitar os efeitos colaterais da nova faixa cambial.

A desvalorização da moeda implica agravamento do excesso de demanda interna. Há que atentar para o tradicional risco de qualquer desvalorização cambial: a anulação de seus efeitos via contaminação inflacionária, o que acaba tornando necessárias novas desvalorizações e a consequente geração de uma perversa espiral câmbio/salários.

A desvalorização do real atenua o déficit externo, mas também tende a ampliar a produção das exportações e dos produtos que competem com os importados. Esse fato implica transferir a preocupação fundamental da equipe econômica das contas externas para a demanda interna.

Se anteriormente o juro alto era instrumento fundamental para financiar o déficit externo, torna-se agora instrumento essencial para evitar o desajuste interno. Nesse sentido, que não se alimentem ilusões acerca do abrandamento da política monetária a partir da perspectiva de equacionamento dos desajustes externos.

O governo terá de monitorar com mão-de-ferro o nível de atividade interna, se quiser evitar que a desvalorização do real seja anulada pela aceleração das taxas de inflação. O governo pode agora utilizar a política monetária mais livremente, sem o temor da crise externa. Mas passa a enfrentar a não menos temida restrição inflacionária na fixação de sua estratégia monetária.

O gradual abandono da âncora cambial na estratégia de estabilização implica riscos menores no setor externo da economia. Vai permitir o controle mais rígido do capital externo de curtíssimo prazo e afasta a iminência da crise cambial.

Mas, em compensação, sinaliza também para o fim do alegre período de combate à inflação com crescimento e consumismo ostensivo.

Quem acha que já apertou o cinto suficientemente, que se prepare para a fase mais dura de qualquer política de estabilização: o período de ajustamento às taxas de inflação externa, durante o qual os riscos de reinflação tornam-se extremamente ameaçadores. Especialmente quando os fundamentos da estabilidade, como as reformas tributária e do setor público, não se acham presentes.

 

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA).

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