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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

O patinho feio tributário


A CPMF está sendo usada, com sucesso, para atingir múltiplas finalidades: garantir o ajuste fiscal, custear a saúde pública, alimentar o fundo de combate à pobreza, detectar os sonegadores e aumentar o salário mínimo. Mesmo assim, todos a criticam e insistem em ignorar suas qualidades, principalmente a de aliviar o contribuinte brasileiro. Afinal, se a CPMF não existisse, os impostos convencionais, quase sempre ineficientes e injustos, estariam com alíquotas mais elevadas, onerando ainda mais fortemente os contribuintes indefesos. A história começou com uma proposta para substituir os atuais tributos declaratórios por um Imposto Único. Contudo a fúria fiscalista do governo acabou transformando o Único em um imposto a mais! A CPMF, o Imposto sobre Movimentação Financeira (IMF) ou o Imposto Único sobre Transações (IUT), como era originalmente conhecido, é um tributo de grande eficácia arrecadatória. Ainda que, com certa ligeireza, se lhe atribuam inúmeras distorções econômicas, esse tipo de tributo deixa um saldo amplamente favorável quando se pesam suas vantagens e desvantagens. A objeção mais comum se refere ao impacto prejudicial da cumulatividade da CPMF nos mercados financeiros e no comércio exterior. Essa crítica é vazia. Nada há que, tecnicamente, impeça o governo de desonerar as exportações, de onerar as importações em igualdade de condições com a produção nacional e de isentar os mercados financeiros, como, aliás, já foi feito parcialmente. Cumpre dizer que o ministro Alcides Tápias vem fazendo um grande esforço para criar mecanismos mais aperfeiçoados para desonerar as exportações e impor uma Contribuição de Equalização Econômica sobre os produtos importados, com a finalidade de extirpar a brutal discriminação contra a produção nacional. A CPMF tem um mérito inegável, convenientemente ignorado por vários de seus críticos: o de eliminar do atual sistema tributário sua maior aberração, qual seja, as diferenças artificiais de custos de produção causadas pela ampla e generalizada sonegação de impostos no país. A forma pela qual a evasão de impostos distribui a atual carga tributária implica distorção econômica mais grave do que a alegada alteração nos preços relativos que um “turnover tax”, como a CPMF, poderia estar causando na economia brasileira. O padrão de incidência tributária atual é caótico, imprevisível, devastador, a ponto de poder fazer quebrar uma empresa eficiente que paga impostos e de fazer sobreviver uma ineficiente, que sonega e saqueia seus concorrentes. A CPMF neutraliza essa anomalia. Contudo ela irrita e enfurece os grandes interesses, porque eles não podem evitá-la. Em geral, o custo da evasão acaba superando a própria economia tributária. Essa é a vantagem de um imposto não-declaratório, que por ser insonegável permite alíquotas baixas, porém universais. O tributo também desagrada a coletores de impostos, tributaristas e advogados de sonegadores, já que não dá motivo para sua interveniência. Esse tipo de tributação reduz custos, elimina a corrupção, distribui o ônus tributário na exata proporção das operações econômicas realizadas pelos contribuintes, e assim os que pagam muito hoje, como os assalariados, poderão pagar menos e os que sonegam pagarão as suas partes. Essa é a essência da proposta do Imposto Único. Recentemente recebi um e-mail de um amigo que, indignado com a CPMF, dizia: “Pago imposto quando remeto dinheiro para minha filha que estuda em outra cidade e ela paga de novo quando o retira para usar. Não faz sentido”. A CPMF é um tributo sobre circulação monetária. Havendo movimentação bancária, haverá tributação. Ela pode ser interpretada como cobrança pelos serviços públicos e pelo esforço social que tornam possível fazer recursos monetários circular sem ser portados manualmente. É um tributo sobre um serviço que gera valor, que reduz custos e que a sociedade disponibiliza por meio dos bancos e que não seria possível sem um conjunto de instituições que garantissem segurança e confiabilidade. Portanto a tributação da circulação monetária e sua cumulatividade não devem ser confundidas com bitributação. A questão que meu amigo realmente coloca é clara: se a CPMF, ou o Imposto Único, é justo. Uma resposta adequada exige uma análise custo-benefício. Não se trata de avaliar se é injusto tributar em 0,30% cada transferência bancária, mas de saber se não seria ainda mais injusta a alternativa de tributar a renda dos agentes econômicos com alíquotas superiores aos atuais 27,5% de IR! Maior injustiça é a evasão dos impostos declaratórios, como o IR ou o ICMS, que não são pagos pelos grandes sonegadores. Maior iniquidade é permitir que as empresas multinacionais usem os preços de transferência para enviar seus lucros aos paraísos fiscais e que não paguem tributos no Brasil, ainda que exijam serviços públicos aqui para gerar os lucros que enviam ao exterior. Não é justo que as alíquotas dos impostos aumentem a cada ano que passa para compensar a perda de arrecadação causada pelos esquemas cada vez mais sofisticados, e cada dia mais incontroláveis, dos grandes evasores de impostos. É por isso que numa relação custo-benefício é preferível pagar 0,30%, ou até mesmo 3%, sobre a remessa que meu amigo faz a sua filha a 27,5% sobre seu salário total ou pagar 30% de impostos em seu carrinho de compras de alimentos no supermercado. Esse absurdo tributário só existe porque o sistema tem Imposto de Renda e ICMS demais e CPMF de menos. Houvesse um imposto único, só com uma CPMF de, digamos 3% ou 4%, e quase todos os demais impostos poderiam ser eliminados. Todos pagariam, e isso seria mais justo que o sistema atual. ​ Infelizmente, os lobbies comandados pelas corporações da burocracia e dos grandes sonegadores passaram a imagem de que a CPMF é injusta e de que o Imposto Único é utópico e ineficiente. Mas a realidade é outra. São indesejados apenas pelos malfeitores (mas são bem-vindos pelo contribuinte que respeita a lei). São ineficientes apenas para aqueles que vão acumulando fortunas à custa dos indefesos contribuintes da classe média, assaltados pelos impostos “justos e eficientes” que só os empobrecem.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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