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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Os impostos na visão de Roberto Campos

Ele foi um ardoroso defensor do imposto único. Tal postura pode surpreender os que diziam que "Bob Fields" era um conservador. Estavam errados. Ele foi sempre original, um iconoclasta, um criador de paradigmas. Entre 1964 e 1967, implementou o que se pode chamar de última reforma tributária no Brasil. As mudanças implementadas por Roberto Campos abriram caminho para o que se convencionou chamar de "milagre brasileiro", verificado durante a década de 70, período de altas taxas de crescimento da economia. A partir dos anos 80, o político Roberto Campos passou a criticar a administração pública brasileira. Afirmava que a máquina estatal ficara deformada, desviando-se de seus objetivos originais. Apontou inúmeros nós a serem desatados para o país poder continuar na construção de uma economia moderna e próspera. Em certa ocasião disse: "Continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível". Uma de suas principais críticas nos últimos dez anos foi aos impostos. Percebeu que os tributos sobre valor agregado, os IVAs, tidos como justos e eficientes, perfeitos, enfim, escondiam uma outra realidade, bem menos atraente que a idéia original, e cujas deformações eram ampliadas em países com organização federativa: a exacerbação burocrática, a galopante corrupção, a exasperadora complexidade, os proibitivos custos de arrecadação, a irresistível evasão, a convidativa sonegação. Enfim, um monstro do gênero declaratório, da espécie burocrático-propinatória, apelidado de "ora pro nobis", pelos burocratas de plantão.

Em 3/11/1991, em artigo no jornal "O Estado de S. Paulo", intitulado "Reforma ou revolução", Roberto Campos afirmou que a ética fiscal brasileira fora destruída. Dizia ele que pagar impostos no Brasil é comprar chateação e que apenas as empresas organizadas do setor privado e os assalariados com carteira assinada é que pagavam tributos diretos. Os outros dois terços, que sonegavam, eram classificados por ele como delinquentes. Entre as simplificações reformistas e as inovações revolucionárias no âmbito fiscal, Roberto Campos preferiu ficar com as últimas. Passou a defender a idéia do imposto único, proposta que apresentei cerca de dois anos antes em um artigo na Folha, "Por uma revolução tributária". Roberto Campos escreveu naquele memorável artigo que, "em matéria fiscal, o país tem chance de uma experiência pioneira com o imposto único. Isso pela coincidência de circunstâncias inexistentes alhures: a) tanto a ética como a estrutura fiscal entraram em colapso; b) a economia está desmonetizada -o papel-moeda em poder do público é de 1% do PIB; c) o sistema bancário é surpreendentemente eletronificado para um país do Terceiro Mundo". Campos completou, afirmando: "A meu ver, as características de uma revolução fiscal seriam: 1) um fato gerador suficientemente amplo e simples para elidir a fronteira entre contribuintes e delinquentes; 2) alíquotas suficientemente baixas para tornar ridícula a engenharia da sonegação; 3) coleta automatizada para tornar dispensáveis as três burocracias do fisco; e 4) repasse instantâneo aos beneficiários, evitando-se as complicações da indexação dos tributos. Todas essas condições são satisfeitas pela proposta do professor Marcos Cintra e por nenhuma das propostas reformistas". Desde então Roberto Campos se tornou um guerrilheiro do imposto único. Enfatizava a necessidade de implantar essa sistemática tal como fora idealizada, ou seja, como um imposto para substituir tributos de natureza arrecadatória. No entanto a ânsia fiscalista do governo utilizou a proposta de modo oportunista e criou o IPMF, depois transformado em CPMF. Mas foi um imposto a mais, desvirtuando assim a idéia original. A experiência da CPMF proporcionou aos críticos do imposto único uma oportunidade valiosa para satanizar aquele tributo. Criou-se o mito de que, por ser cumulativo, ou em cascta, ele seria necessariamente de baixa qualidade, e por isso deveria ser combatido. A sonegação, essa sim a principal anomalia do sistema tributário brasileiro, foi relegada a um segundo plano nos debates sobre a reforma tributária. A sonegação criou uma vantagem comparativa perversa. Permite a sobrevivência de empresas ineficientes na produção, desde que ousadas na sonegação; e deixa morrer as que são competitivas na produção, mas tímidas na sonegação. Com sarcasmo, Roberto Campos distinguia dois tipos de cascata, uma maligna e outra benigna. A primeira compreende tributos como o PIS e a Cofins, de recolhimento inevitável. A segunda diz respeito aos impostos que reduzem as obrigações fiscais, tais como o Simples e o Imposto de Renda sobre o lucro presumido. As críticas são sempre dirigidas ao primeiro grupo. Assim, quando a carga tributária pode ser reduzida, a cascata é considerada benigna até pelos ferrenhos críticos da cumulatividade. Contudo, quando a cascata implica carga tributária alta, torna-se diabólica. Exemplo claro e inegável se dá com respeito às críticas à CPMF, em razão de esse tributo ter se mostrado insonegável. As discussões em torno da reforma tributária em 1999 deram origem a um documento da Comissão de Reforma Tributária que Roberto Campos classificou de "aperfeiçoamento do obsoleto" em um artigo na Folha em 12/9/99, intitulado "Como sair do manicômio fiscal". Na ocasião, defendeu o projeto alternativo, um embrião do imposto único, que apresentei como uma forma de conciliar a duas vertentes de pensamento: a dos que defendem um sistema de impostos declaratórios e a dos que lutam por um sistema não-declaratório. Roberto Campos defendia a "reformatação do Estado", e nesse processo deu lugar de destaque ao imposto único. Em sua brilhante jornada a serviço do país, sua mente privilegiada foi sempre capaz de ver muito além. A reforma tributária é hoje uma demanda fundamental para nos aproximarmos da "riqueza atingível" e para combatermos a "pobreza corrigível". Para isso, há como elemento norteador o pensamento de Roberto Campos e o imposto único.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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