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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Reforma sem forma

O Dicionário analógico (ideias afins) da língua portuguesa de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo relaciona a palavra "reforma" com os conceitos de mudança e de melhoria. Algumas ideias usualmente correlacionadas com os objetivos de uma reforma são transformação, metamorfose, evolução, melhoramento, diminuição do mal, progresso, avanço, impulso para a frente, promoção e evolução. São noções que deveriam estar na essência das reformas que o governo pretende implantar no país.

Infelizmente, a reforma tributária desponta como disforme, amorfa, sem conteúdo estrutural acentuadamente melhorativo. Com muita generosidade, poderia ser caracterizada apenas como corretiva de alguns gritantes desvios.



O deputado Virgilio Guimarães, cuja criatividade despontou em seus primeiros comentários sobre a importante tarefa que lhe fora atribuída, produziu um relatório que nasceu tolhido por um debate estéril e pouco produtivo. O maior interessado - e o alvo primordial de uma autêntica reforma tributária, o pagador de impostos - não participou do debate, que foi cerceado, desde o princípio, pelas amarras oficialescas de uma Comissão de Desenvolvimento Econômico e Social do governo federal e pela timidez e falta de empenho da Comissão Especial da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados, que se mostrou inapetente para avançar com ousadia na exploração e na formulação de um novo modelo tributário para o Brasil.


As atividades da atual Comissão Especial foram incomensuravelmente mais pobres e menos dinâmicas do que os trabalhos da comissão presidida na legislatura anterior pelo então deputado Germano Rigotto. O presidente da atual Comissão de Reforma Tributária, deputado Mussa Demes, que foi relator da comissão com Rigotto, preferiu deitar sobre os louros de seu festejado parecer anterior, em vez de estimular a abertura de novas frentes de debate. Quase não houve audiências públicas com especialistas e com representantes de entidades da sociedade civil. Contribuições como o Imposto Único Federal, aprovado na Comissão Especial do Imposto Único em 2002, e a proposta do deputado Luiz Carlos Hauly, que exibiu com candura uma notável evolução de pensamento, mal puderam ser debatidas em profundidade pelos parlamentares. Visões polêmicas e corajosas como a competição tributária do deputado Sandro Mabel ou emendas alternativas como a do deputado Carlos Eduardo Cadoca e a do deputado Augusto Nardes não foram suficientemente expostas ao escrutínio parlamentar.


O cidadão brasileiro pagador de impostos imagina, sonha mesmo, uma reforma tributária como algo que simplifique, reduza custos, desburocratize e, sobretudo, seja capaz de instaurar um regime de justiça fiscal em que a evasão, a elisão, a sonegação e a corrupção sejam minimizadas até o limite das possibilidades éticas e tecnológicas verificáveis em nosso país. Tudo indica, contudo, que o Brasil está muito longe de atingir esse desiderato.


Dois fatos, contudo, merecem uma apreciação menos severa. Nesses dois casos, prevaleceu a força avassaladora e irresistível da lógica econômica:


como está, o ICMS não pode ficar - a anomalia operacional e as disfunções geradas pela aplicação de um imposto sobre valor agregado (o ICMS) no âmbito de competência de entidades subnacionais contrariam a vocação natural desse tipo de tributo, mais apropriado para ser aplicado em estruturas políticas unitárias;


por ser como é, a CPMF deve ficar - a contundente eficácia operacional da CPMF revelou um tributo de enorme robustez arrecadatória, baixo potencial de evasão e de abrangência praticamente universal.


A proposta do deputado Virgilio Guimarães avança na racionalização do ICMS ao federalizar sua legislação e unificar suas alíquotas. Corrige algumas das distorções de um tributo "que não presta, vagabundo, corrupto", como afirmou o deputado Luiz Carlos Hauly.


O relatório peca, contudo, ao vislumbrar a possibilidade de ser arrecadado segundo o princípio do destino, deixando de ser um sistema misto, origem/destino, como é hoje. Essa transformação acentuará os altos custos de conformidade desse tributo, aumentando o potencial de evasão e a complexidade burocrática de sua arrecadação e distribuição.


Mas é na criação da CMF (Contribuição sobre Movimentação Financeira) que o deputado Virgilio Guimarães contribui decisivamente para a modernização do sistema tributário nacional. O mais curioso é que a crítica generalizada à CPMF não condiz com a intransigente defesa por sua permanência nem com a disputa acirrada por sua arrecadação. Corajosamente, o relator não se deixa levar por essa contradição.


Acedendo ao imperativo das evidências, o relator introduz a CMF de forma permanente, permitindo que seja utilizada na substituição da contribuição sobre folha de salários das empresas no custeio do INSS. Dessa forma, torna-se possível a desoneração do custo do fator trabalho, com reflexos positivos na valorização dos salários, na geração de empregos e na redução dos custos de produção e dos preços. Abre-se, dessa forma, um caminho histórico para a ocupação de maior espaço no sistema tributário nacional para os tributos eletrônicos, não declaratórios, insonegáveis e universais.


No mais, o projeto de reforma tributária pouco avança, limitando-se a introduzir alterações pontuais dentro do sistema tributário brasileiro. Há riscos de elevação da carga tributária, na esteira de uma tradição firmemente defendida e implementada pelos partidos que hoje, na oposição, passam a criticar, sem nenhum pudor, o que praticavam ainda ontem. Tributam-se as importações para garantir isonomia com a produção interna, consolida-se a desoneração das exportações e inicia-se a redução da tributação na formação de capital.


No cômputo geral, frustram-se os governadores, que queriam abocanhar maior parcela do bolo tributário, frustram-se os contribuintes, que desejavam menor carga tributária, frustram-se os prefeitos dos municípios mais dinâmicos, que perderão receitas em demagógicas alterações nos critérios de partilhas, e frustram-se empresários e trabalhadores, que esperavam uma reforma capaz de recuperar o crescimento econômico perdido. Gáudio apenas, e mais uma vez, para o governo central que consegue prorrogar a CPMF e a DRU (Desvinculação de Receitas da União). O resto não parece ser importante.


Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 57, doutor pela Universidade Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, é secretário das Finanças de São Bernardo do Campo e autor de "A Verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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