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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Euforia

"A economia vai bem, mas o povo vai mal" - Presidente Médici, sobre o período do milagre brasileiro na década de 70.


Em meu artigo "O PT salvou o Brasil", publicado neste mesmo espaço em 22 de setembro do ano passado, apontei a espetacular melhora nas expectativas sobre o futuro da economia brasileira, operada a partir da adoção pelo governo do PT de uma política econômica convencional, à la FMI. "Resgataram o Brasil do desastre quase certo. Por quanto tempo, ninguém sabe. Mas evitaram a derrocada que, no fim do ano passado (2002), chegou a ser considerada inevitável."


Porém, ao concluir o artigo, deixava uma dúvida no ar ao afirmar que "recolocar o país na trilha do crescimento é imperativo econômico e político para o atual governo". Afinal, estabilidade macroeconômica é condição necessária, mas não suficiente, para o desenvolvimento econômico.


Ano novo, novas esperanças no ar, otimismo desenfreado, euforia mesmo... São essas as impressões sentidas no ambiente econômico brasileiro. A leitura dos jornais e das revistas de economia, os noticiários de rádio e televisão e as opiniões dos analistas especializados convergem na afirmação de que a redenção finalmente chegou. O epíteto desse clima foi a recente afirmação do ministro Antonio Palocci Filho: "É preciso dizer que o Brasil decidiu de forma definitiva ser um país arrumado".


O que se deve esperar de 2004? Resolvi fazer um rápido e perfunctório sobrevoo por duas das mais respeitadas publicações econômicas: o caderno "Dinheiro" da Folha de quinta-feira passada e a mais recente edição da revista "Conjuntura Econômica", da Fundação Getúlio Vargas.


Os indicadores econômicos publicados diariamente na Folha mostram perspectivas animadoras para 2004. O real não para de se fortalecer ante o dólar, a ponto de o Banco Central precisar intervir para evitar sua excessiva apreciação. As Bolsas de Valores refletem as volumosas entradas de recursos externos e, já no primeiro dia do ano, sofreram valorização recorde, superior a 4%. O índice Bovespa supera os 23,5 mil pontos, recorde histórico. O risco Brasil caiu para 430 pontos, uma melhoria quase inacreditável se lembrarmos os 2.500 pontos atingidos durante a transição para o governo do PT. O ajuste fiscal deve superar a meta de superávit de 4,5% do PIB, as reservas internacionais começam a crescer, o saldo comercial de dezembro foi de US$ 2,8 bilhões, alimentando um resultado positivo anual inédito de cerca de US$ 25 bilhões.


Os indicadores financeiros não são menos animadores. Os juros básicos da economia retrocederam a patamares de 16% ao ano, fazendo prever que a tendência de queda perdure ao longo de 2004. Os juros aos tomadores e os "spreads" bancários finalmente começam a ceder. E, na esteira desses indicadores positivos, os índices de preços convergem para as metas estabelecidas pelo Banco Central. O IGP-M acumulado nos 12 meses anteriores, que fora de 21,5% em setembro, caiu para 8,7% em dezembro. De fato, os fundamentos macroeconômicos da economia brasileira sofreram uma dramática reviravolta, tornando-se fonte de otimismo e de expectativas altamente favoráveis para 2004.


Mas e o lado real da economia? Qual a avaliação que a população brasileira faz da conjuntura econômica? Curiosamente, os efeitos dessa safra de boas notícias não parecem ter atingido a massa da população, aqueles que auferem rendimentos do trabalho. Indicadores macroeconômicos medem variáveis de interesse imediato dos que auferem rendimentos de capital, porém não se relacionam diretamente com os interesses da maior parte da população.


Essa questão intriga, pois a sensação generalizada é a economia que ainda continua em crise. Como está a taxa de emprego? Como vêm se comportando a demanda agregada, os salários reais e as vendas no comércio? Por que um inocente anúncio de emprego ainda mobiliza dezenas de milhares de candidatos que se acotovelam por uma oportunidade de trabalho? Para responder a essa questão, apelou para indicadores e pesquisas da "Conjuntura Econômica". Apesar do sucesso da política de estabilização e das expectativas favoráveis dos empresários brasileiros, aferidas nas sondagens de opinião, os indicadores de emprego não são animadores. Os técnicos da FGV alertam que as perspectivas de curto prazo para a economia são de "aumento das vendas e da produção; no entanto recuperação lenta do nível de emprego". A segunda ducha de água fria vem nos alertas sobre o crescimento da dívida pública ao longo de 2003 e da necessidade imperiosa de continuidade, e até de aprofundamento, do ajuste fiscal.


De fato, a dívida pública avançou de 56,5% do PIB no final de 2002 para 57,8% em 2003. Poderá a bonança econômica ser apenas uma bolha? Enquanto as sondagens conjunturais da FGV apontam resultados positivos nas expectativas de vendas e de produção para 2004, as previsões para emprego e renda são sombrias. Apesar do acúmulo de notícias auspiciosas ao longo do segundo semestre do ano passado, todos os indicadores de desemprego mostraram elevações constantes. A taxa média de desemprego aberto, que foi de 7,2% em 2002, atingiu 12,9% em outubro passado. O rendimento médio do pessoal ocupado caiu quase 9% ao longo de 2003.


O que essas comparações nos sugerem é que a economia vai muito bem para os ricos e mal para os pobres. Dirão os economistas que há defasagens temporais entre a evolução dos indicadores macroeconômicos e as variáveis reais da economia; que o crescimento do emprego ocorre após certo transcurso de tempo, durante o qual os empresários buscam garantias de continuidade da expansão da demanda agregada.


Há que lembrar, contudo, que a questão do emprego não é tão simples. A globalização, as novas formas de organização da produção e as mudanças tecnológicas criaram um cenário em que a produção cresce em todo o mundo sem que o emprego cresça na mesma intensidade. A absorção do desemprego não mais ocorre "pari passu" com o crescimento da produção. Mesmo nos países desenvolvidos, onde o desemprego vem caindo, foram necessários ajustes estruturais significativos em termos de educação e capacitação profissional.


No Brasil, além dessa defasagem tecnológica, surge ainda o fantasma das defasagens quantitativas. Segundo Marcelo Néri, competente estudioso da questão de emprego e renda no Brasil, "se o Brasil crescer nos próximos quatro anos 5% per capita ao ano, vai gerar 10 milhões de empregos, e a miséria cairia 18%". Crescimento per capita de 5% implica expansão do PIB de 7% ao ano. As mais otimistas previsões falam em 4% em 2004, após 0,5% em 2003.


Como se vê, a promessa de 10 milhões de empregos não será cumprida pelo governo. E, mesmo se fosse, não resolveria o problema do desemprego e da pobreza.


De fato, o PT salvou o país em 2003. Mas para quem?




Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor em Economia pela Universidade Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, foi deputado federal (1999-2003). É autor do livro "A Verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Atualmente, é secretário das Finanças de São Bernardo do Campo. Internet: www.marcoscintra.org. E-mail: mcintra@marcoscintra.org.**

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