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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

O Brasil e os modelos europeu e americano de tributação


No estudo "Condicionantes e Perspectivas da Tributação no Brasil", a Receita Federal oferece valiosa e prudente reflexão acerca dos rumos da reforma tributária no país. Tratando dos modelos alternativos de reforma, o estudo afirma ser necessário que "ele seja concebido em conformidade com as circunstâncias culturais do país no qual for aplicado. (...) a mera importação de soluções adotadas internacionalmente não é garantia de medida bem-sucedida. Muito pelo contrário, a probabilidade de um resultado negativo é alta". O Brasil, infelizmente, é uma economia de fraca tradição tributária. A sonegação e a evasão não são reprimidas com a mesma intensidade observada em outros países de tradição tributária mais sólida. Aqui, a sonegação e o planejamento tributário não são considerados atitudes anti-sociais. Pelo contrário, são vistos como atos de saudável oportunismo empresarial. Esse comportamento se diferencia radicalmente do encontrado em países com forte tradição tributária, "onde a consciência social em relação ao pagamento de impostos é alta, onde ser sonegador é sinônimo de vergonha e exclusão social, há educação e cidadania tributária, onde o fisco tem poderes fortíssimos, mas também deveres, que são monitorados pela sociedade". Considerando-se o mimetismo que acomete o pensamento tributário nacional, tais considerações devem servir de alerta para que não se cometam erros. No Brasil, o discurso da reforma tributária se apóia em duas metas fundamentais: a desoneração da produção e o reforço da tributação pessoal. O pressuposto é que esse modelo torna possível aumentar a progressividade do sistema, reduzir custos, simplificar os mecanismos burocráticos e combater a evasão. O que muitas vezes não é percebido é a flagrante inconsistência entre esse modelo conceitual e os resultados que dele se espera. A maior parte das propostas de reforma tributária recomenda o modelo europeu, baseado em três espécies básicas: um Imposto de Renda, um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) e um imposto sobre ativos. Em geral o primeiro é de alçada nacional, o segundo, de alçada regional, e o terceiro, de alçada local. Cabe apontar que esse modelo, que recebeu o endosso do Congresso Nacional em sua reforma fatiada aprovada em 2003. Contudo ele não desonera a produção, pois o IVA é um tributo indireto incidente sobre as etapas do processo produtivo; não garante maior progressividade, pois, novamente, é um tributo indireto; e não garante mais simplicidade e menor evasão, dada a característica essencialmente declaratória e burocrática dos tributos que compõem o sistema. O modelo tributário que atinge as metas desejadas nos discursos da maior parte dos tributaristas brasileiros não é o modelo europeu que eles defendem, mas sim o modelo americano, composto por um Imposto de Renda de âmbito nacional, um tributo sobre vendas ao consumidor de alçada regional e um tributo sobre ativos cobrado pelo poder local. Os norte-americanos não possuem IVA e, portanto, são os únicos que desoneram por completo a produção. Recente trabalho da empresa de consultoria Deloitte "Pesquisa Internacional sobre Tributação", compara o que pode ser chamado de modelo brasileiro (com tributos não-declaratórios e cumulativos) com sistemas tributários de 34 países, inclusive americanos e europeus. Os dados mostram que a tributação no Brasil passou por um processo de evolução e de aculturação ambiental típica de países com fraca tradição tributária, que começa a ser aplicado em vários outros países com condições semelhantes. Relata o estudo que "(...) as contribuições sobre receita bruta, tais como o PIS e a Cofins (...), já possuem seus similares em 35% dos países pesquisados" e que "a CPMF já não é mais peculiaridade de alguns países da América Latina. Ela é encontrada em 15% dos países da amostra". Vale acrescentar que a Austrália, país não incluído na amostra da Deloitte, já vem aplicando tributação sobre movimentação financeira há algumas décadas. Os principais resultados acham-se na tabela nesta página e demonstram que a característica principal do modelo brasileiro é a conjugação de forte tributação sobre renda, produção e consumo, com tributos complementares sobre faturamento bruto e sobre movimentação financeira. Em realidade, o Brasil aplica o modelo europeu acrescido de tributos cumulativos, cujas características fundamentais se ajustam a economias com fraca tradição tributária, altos coeficientes de informalidade e baixos níveis de renda. O que se depreende da análise comparativa é que não há como esperar alta participação da tributação pessoal na carga tributária se a economia tem renda per capita baixa e mal distribuída; não há como evitar tributação indireta em ambiente com forte predisposição à evasão e ao descumprimento da burocracia fiscal exigida pelos impostos declaratórios sobre valor agregado; e não há como evitar que países com fraca tradição tributária lancem mão dos tributos não-declaratórios sobre faturamento e movimentação financeira, como é o caso de várias economias da amostra da Deloitte. É lamentável que o Brasil retroceda em seu processo de evolução e especialização tributárias tentando defender um discurso formal de desoneração da produção que não combina com a prática do modelo europeu que pretende copiar. Ao mesmo tempo, o país repudia a bem-sucedida experiência com tributos inovadores, como a CPMF. O resultado inevitável será a frustração com o discurso e o insucesso com a prática específica que não se coaduna com as tradições culturais e econômicas do país.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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