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O engodo da não-cumulatividade


O escritor inglês C. C. Colton afirmou que "há enganos tão bem elaborados que seria estupidez não ser enganado por eles". A mitificação da superioridade da não-cumulatividade sobre os tributos em cascata é um desses trágicos enganos. A cumulatividade sempre esteve presente no sistema tributário brasileiro, apesar das recentes providências para tornar o PIS-Cofins não-cumulativo. Mesmo com a forte campanha anticumulatividade encetada pelas principais lideranças empresariais e pelo governo, os tributos cumulativos continuam sendo preferidos aos impostos sobre valor agregado (IVAs) pela ampla maioria das empresas brasileiras. ​ Essa aparente contradição entre discurso e prática tem razão objetiva para existir. A campanha anticumulatividade foi encabeçada por grupos empresariais ligados à grande indústria, que, equivocadamente, acreditavam que a mudança no PIS-Cofins poderia lhe garantir certo alívio da carga tributária. ​ A hipótese básica dos grupos que defenderam a não-cumulatividade era que os prestadores de serviços eram subtributados e que a não-cumulatividade do PIS-Cofins serviria para equalizar a arrecadação de tributos entre todos os setores. Tal hipótese é falsa. O setor de serviços é onerado com carga tributária global de 31% sobre seu valor agregado, praticamente o mesmo que na indústria (30%), como comprovado em estudo da Fundação Getúlio Vargas. ​ Há alguns anos a bandeira da não-cumulatividade foi transformada em dogma, dando-se início a uma guerra santa contra tributos cumulativos como o PIS, a Cofins e a CPMF. ​ Contudo importantes tributos cumulativos como o Simples, o Imposto de Renda cobrado sobre lucro presumido, o ISS e até mesmo extravagâncias como o ICMS cumulativo (por exemplo, quando cobrado sobre faturamento no setor de alimentação em São Paulo), entre inúmeros outros casos, não foram atacados pelos defensores da nova verdade. ​ As contradições tanto no discurso quanto na prática da anticumulatividade chegam a ser hilariantes. ​ A elevação quase generalizada da carga tributária, provocada pelo novo PIS/Cofins, fez a unanimidade a favor da não-cumulatividade evaporar. Tarde demais, a adoção da medida propiciou ao governo tributar as importações, medida diga-se de passagem correta, mas que sofria oposição de setores importadores de matérias-primas. ​ Ademais, a leitura da lei 10.833/ 03 deixa claro que a não-cumulatividade do PIS-Cofins implicará maiores custos burocráticos na apuração e na arrecadação do novo tributo. O método declaratório da nova contribuição é complexo, cheio de meandros e incertezas administrativas, o que vem suscitando inúmeros seminários, cursos e encontros de esclarecimentos para garantir a conformidade das empresas com a nova legislação. ​ A existência de exceções, de créditos presumidos e de imunidades e isenções logo transformarão a nova contribuição não-cumulativa em foco de custos para as empresas e de novas fontes de receita para os advogados tributaristas e auditores fiscais. ​ Contudo o mais surrealista na lei 10 833/03 é a sua total incapacidade prática de colocar em uso o princípio fundamental da não-cumulatividade dessa nova contribuição. ​ Cumulatividade existe não apenas no tocante a um tributo específico, quando o próprio tributo se torna base de arrecadação dele mesmo em etapas posteriores no processo de produção. Ela também pode ocorrer entre tributos diferentes, quando o valor arrecadado de um tributo se torna base de cálculo de outros. No caso do PIS-Cofins não-cumulativo, surge um caso esdrúxulo, em que simultaneamente o PIS-Cofins devido é base de cálculo para o ICMS e o ICMS devido é base de cálculo do PIS-Cofins. A cumulatividade entre tributos torna-se assim parte integrante do novo PIS-Cofins não-cumulativo. ​ Igualmente reveladora das contradições existentes no PIS-Cofins não-cumulativo é a atitude do governo ante as reivindicações dos setores que se sentiram prejudicados. Se, de fato, a não-cumulatividade fosse benéfica ao conjunto da sociedade, seria lícito supor que, superada a questão da coordenação da mudança, todos sairiam ganhando, direta ou indiretamente. Nesse sentido, o conjunto dos setores produtivos deveria sentir melhorias em seus custos de produção e em suas respectivas cargas tributárias. Não é o que se passa, no entanto. ​ Ainda durante o processo de negociação do novo PIS-Cofins vários setores reivindicaram -e foram atendidos- permanecer no sistema cumulativo, em vez de migrar para o sistema que supostamente seria mais benéfico para eles. ​ O que essas exceções nos mostram com meridiana clareza é que a lógica empresarial da minimização dos custos indica a superioridade da cumulatividade sobre a não-cumulatividade e que as alegadas vantagens em termos de eficiência e produtividade dos sistemas de tributação sobre valor agregado não são endossadas por amplos segmentos do setor produtivo nacional. ​ A preferência empresarial para permanecer no PIS-Cofins cumulativo é tão evidente a ponto de estimular a adoção de projetos de planejamento tributário sofisticados com a finalidade de evitar a não-cumulatividade. Em reportagem no jornal "Valor" de 17 de fevereiro, a repórter Marta Watanabe descreve a manobra de alguns grandes grupos empresariais que aderiram ao Refis para a quitação de débitos tributários de reduzida significação com o intuito de se qualificar para pagar IR e CSLL pelo sistema de lucro presumido e, por tabela, adquirir o privilégio de permanecer no PIS-Cofins cumulativo. ​ Vencida a guerra santa contra a cumulatividade, as empresas brasileiras e também os consumidores percebem, atônitos, que foram vítimas de monumental engodo.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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