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  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Federação em chamas


A discussão sobre a reforma tributária vem se arrastando pelos últimos 15 anos. Infelizmente, nada melhorou, e uma das principais metas do Congresso Nacional, a de acabar com a guerra fiscal, está longe de ser resolvida. As antigas escaramuças fiscais entre Estados atingiram proporções absurdas, transformando-se em batalhas sangrentas. Os limites territoriais dos Estados tornaram-se "checkpoints" alfandegários dentro de um contexto de violenta guerra econômica. Recente ato da Secretaria da Fazenda de São Paulo deixou de reconhecer os créditos do ICMS de produtos adquiridos com incentivos fiscais em outros Estados. Empresas paulistas substituíram seus fornecedores e passaram a demandar insumos produzidos internamente. Tal medida foi motivada pela incapacidade do governo paulista de resolver conflitos federativos gerados pela concessão de benefícios fiscais envolvendo o ICMS e que foram intensificados a partir de meados da década de 90. A fuga de empresas paulistas fez a arrecadação do ICMS cair ininterruptamente de 1997 a 2004. A participação do Estado na receita total desse imposto caiu de 39,4% para 33,5% em oito anos. Por outro lado, no mesmo período, a região Nordeste elevou sua fatia de 13,1% para 14,4%, e o Centro-Oeste, de 6,9% para 8,8% do total. A reação do fisco paulista deu origem a um contra-ataque liderado pelo Distrito Federal, depois seguido por Goiás, que passou a bloquear na divisa de seu território caminhões com produtos originários de São Paulo. Na esteira do conflito fiscal, o governo paulista anunciou benefícios envolvendo o ICMS para segmentos da indústria e do comércio atacadista. Trata-se de antiga reivindicação desses setores, cujo atendimento vai colocar mais lenha na fogueira da guerra entre Estados. A disputa entre unidades da Federação que visa conceder benefícios fiscais para atrair investimentos não é uma prática saudável. Os ganhos, quando existem, se restringem ao curto prazo. Estados de maior poder de ação reagem e anulam os benefícios momentâneos obtidos pelos que concedem incentivos. Para o país como um todo, trata-se de um jogo de soma negativa, pois que resulta em distorções no processo de escolha de localização industrial e, conseqüentemente, reduz a eficiência e a competitividade da produção nacional. A médio e longo prazo, a guerra fiscal dilapida as finanças estaduais e compromete investimentos na manutenção e na expansão da infra-estrutura necessária para a atividade produtiva. O Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), criado com o objetivo de promover acordos entre os Estados no que tange aos seus tributos, não é capaz de mediar de modo satisfatório os interesses conflitantes de seus membros. Os embates da guerra fiscal desgastaram irremediavelmente a autoridade daquele órgão. Nesse clima de pode-tudo, a guerra fiscal se alastra ao âmbito municipal. O ISS tem sido utilizado amplamente como instrumento de disputa entre municípios. Dentro do atual sistema tributário brasileiro, a guerra fiscal é previsível e inevitável. Faz parte de sua natureza. Não há como evitá-la se se continua adotando como parâmetro de conduta o sistema tributário convencional, baseado em impostos declaratórios do tipo IVA, impostos sobre valor agregado. Cumpre lembrar que o IVA é um tributo tipicamente europeu, que não possui vocação regional. Operacionalmente funciona bem em países pequenos, unitários, nos quais a ética tributária prevaleça. Há poucos exemplos, e praticamente todos malsucedidos, de aplicação de IVAs sob responsabilidade de governos subnacionais. Países como o Canadá, a Índia e a Alemanha adotam IVAs, mas há questionamentos sobre sua aplicação no que se refere à burocracia e à complexidade que geram. A solução usualmente indicada para evitar as distorções que estão ocorrendo no Brasil é a centralização de sua administração. Alternativamente, pode-se adotar a solução alemã, de centralização da arrecadação, ainda que a administração permaneça no âmbito regional. No Brasil, a unificação da legislação do ICMS é apontada pelos defensores dos tributos sobre valor agregado como a solução da guerra fiscal. Propõe-se, também, a criação de um IVA federal, que agregaria o ICMS, o ISS e o IPI. Há propostas de incorporar até mesmo o PIS/Cofins e uma contribuição social não-cumulativa para o financiamento do INSS. Mas a proposta de adotar um IVA federal não soluciona o principal problema tributário no Brasil, que é a burocracia e a sonegação fiscal. Unificar o ICMS com outros tributos sobre circulação não passa de um ligeiro remendo em um sistema que necessita de profundas mudanças estruturais. Como disse o saudoso Roberto Campos, a discussão em bases convencionais será apenas um esforço inútil de aperfeiçoamento do obsoleto. O ICMS é o tributo mais sonegado no país. É um imposto declaratório, burocratizado, que não se ajusta a uma economia de dimensões continentais como o Brasil, onde predominam a sonegação e as fraudes de toda ordem. Além disso, juntar outros tributos num único imposto sobre o valor agregado exigirá uma alíquota elevada, o que estimularia ainda mais a sonegação. Na questão tributária, o país caminha na direção errada e, prosseguindo nessa rota, encontrará o desastre certo.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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