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Federação em chamas


A discussão sobre a reforma tributária vem se arrastando pelos últimos 15 anos. Infelizmente, nada melhorou, e uma das principais metas do Congresso Nacional, a de acabar com a guerra fiscal, está longe de ser resolvida. ​ As antigas escaramuças fiscais entre Estados atingiram proporções absurdas, transformando-se em batalhas sangrentas. Os limites territoriais dos Estados tornaram-se "checkpoints" alfandegários dentro de um contexto de violenta guerra econômica. ​ Recente ato da Secretaria da Fazenda de São Paulo deixou de reconhecer os créditos do ICMS de produtos adquiridos com incentivos fiscais em outros Estados. Empresas paulistas substituíram seus fornecedores e passaram a demandar insumos produzidos internamente. Tal medida foi motivada pela incapacidade do governo paulista de resolver conflitos federativos gerados pela concessão de benefícios fiscais envolvendo o ICMS e que foram intensificados a partir de meados da década de 90. ​ A fuga de empresas paulistas fez a arrecadação do ICMS cair ininterruptamente de 1997 a 2004. A participação do Estado na receita total desse imposto caiu de 39,4% para 33,5% em oito anos. Por outro lado, no mesmo período, a região Nordeste elevou sua fatia de 13,1% para 14,4%, e o Centro-Oeste, de 6,9% para 8,8% do total. ​ A reação do fisco paulista deu origem a um contra-ataque liderado pelo Distrito Federal, depois seguido por Goiás, que passou a bloquear na divisa de seu território caminhões com produtos originários de São Paulo. ​ Na esteira do conflito fiscal, o governo paulista anunciou benefícios envolvendo o ICMS para segmentos da indústria e do comércio atacadista. Trata-se de antiga reivindicação desses setores, cujo atendimento vai colocar mais lenha na fogueira da guerra entre Estados. ​ A disputa entre unidades da Federação que visa conceder benefícios fiscais para atrair investimentos não é uma prática saudável. Os ganhos, quando existem, se restringem ao curto prazo. Estados de maior poder de ação reagem e anulam os benefícios momentâneos obtidos pelos que concedem incentivos. Para o país como um todo, trata-se de um jogo de soma negativa, pois que resulta em distorções no processo de escolha de localização industrial e, conseqüentemente, reduz a eficiência e a competitividade da produção nacional. A médio e longo prazo, a guerra fiscal dilapida as finanças estaduais e compromete investimentos na manutenção e na expansão da infra-estrutura necessária para a atividade produtiva. ​ O Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), criado com o objetivo de promover acordos entre os Estados no que tange aos seus tributos, não é capaz de mediar de modo satisfatório os interesses conflitantes de seus membros. Os embates da guerra fiscal desgastaram irremediavelmente a autoridade daquele órgão. ​ Nesse clima de pode-tudo, a guerra fiscal se alastra ao âmbito municipal. O ISS tem sido utilizado amplamente como instrumento de disputa entre municípios. ​ Dentro do atual sistema tributário brasileiro, a guerra fiscal é previsível e inevitável. Faz parte de sua natureza. Não há como evitá-la se se continua adotando como parâmetro de conduta o sistema tributário convencional, baseado em impostos declaratórios do tipo IVA, impostos sobre valor agregado. ​ Cumpre lembrar que o IVA é um tributo tipicamente europeu, que não possui vocação regional. Operacionalmente funciona bem em países pequenos, unitários, nos quais a ética tributária prevaleça. Há poucos exemplos, e praticamente todos malsucedidos, de aplicação de IVAs sob responsabilidade de governos subnacionais. Países como o Canadá, a Índia e a Alemanha adotam IVAs, mas há questionamentos sobre sua aplicação no que se refere à burocracia e à complexidade que geram. ​ A solução usualmente indicada para evitar as distorções que estão ocorrendo no Brasil é a centralização de sua administração. Alternativamente, pode-se adotar a solução alemã, de centralização da arrecadação, ainda que a administração permaneça no âmbito regional. ​ No Brasil, a unificação da legislação do ICMS é apontada pelos defensores dos tributos sobre valor agregado como a solução da guerra fiscal. Propõe-se, também, a criação de um IVA federal, que agregaria o ICMS, o ISS e o IPI. Há propostas de incorporar até mesmo o PIS/Cofins e uma contribuição social não-cumulativa para o financiamento do INSS. ​ Mas a proposta de adotar um IVA federal não soluciona o principal problema tributário no Brasil, que é a burocracia e a sonegação fiscal. Unificar o ICMS com outros tributos sobre circulação não passa de um ligeiro remendo em um sistema que necessita de profundas mudanças estruturais. Como disse o saudoso Roberto Campos, a discussão em bases convencionais será apenas um esforço inútil de aperfeiçoamento do obsoleto. ​ O ICMS é o tributo mais sonegado no país. É um imposto declaratório, burocratizado, que não se ajusta a uma economia de dimensões continentais como o Brasil, onde predominam a sonegação e as fraudes de toda ordem. Além disso, juntar outros tributos num único imposto sobre o valor agregado exigirá uma alíquota elevada, o que estimularia ainda mais a sonegação. ​ Na questão tributária, o país caminha na direção errada e, prosseguindo nessa rota, encontrará o desastre certo.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

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