top of page
  • Marcos Cintra - Folha de S.Paulo

Custo do dinheiro

No artigo publicado no último dia 1º nesta coluna, afirmei ser possível a redução dos juros sem comprometimento das metas de inflação e sem risco para o financiamento da dívida pública. Para isso, o Banco Central precisa ter coragem para enfrentar o maior entrave ao equacionamento desse problema, que é o escandaloso "spread" praticado pelos bancos no Brasil. ​ Apenas para recordar, mostrei que, enquanto os bancos pagam cerca de 13% ao ano para captar recursos num fundo de investimento, cobram, em média ao ano, 140% no cheque especial e 74% no crédito pessoal. Para as empresas, o financiamento do capital de giro alcança 35%, e, na conta garantida, 66%. Esse absurdo deriva dos "spreads" praticados pelo setor bancário. Em 2003, o "spread" médio no Brasil foi de 43,7 pontos percentuais, enquanto nos países emergentes foi de 3,9 pontos. Ou seja, impressionantes 10,2 vezes mais. ​ Esse quadro nos leva a questionar as principais razões que explicam o poder dos bancos em definir seus preços e os aspectos relacionados à composição dos "spreads" verificados no país. Em dez anos, o número de bancos operando no Brasil caiu de 246 para 164 (em 1964, existiam 336 bancos no país). Atualmente, os cinco maiores concentram 61% do volume de crédito, 60% dos ativos, 64% dos depósitos e 51% do patrimônio líquido. Estudos da Febraban e do Banco Central tentam minimizar o poder de mercado exercido pelos bancos. Segundo eles, a concentração no Brasil seria inferior à existente em países como Portugal, Coréia do Sul e Bélgica; igual à verificada no Japão, Reino Unido e Espanha; e superior à observada nos EUA, na Alemanha e em Luxemburgo. Contudo é fato conhecido na literatura que o poder de oligopólio ou de monopólio nem sempre se traduz em ações de cartelização ou de monopolização. "Contrariu sensu", a prática de ações limitadoras da concorrência pode guardar maior correlação com a permissividade da legislação antitruste do que com os índice de concentração industrial. No estudo do Banco Central "Economia Bancária e Crédito - Avaliação dos Quatro Anos do Projeto Juros e "Spread" Bancário", cita-se que "não existe fundamento na idéia de que os elevados "spreads" bancários observados no país sejam decorrência da baixa concorrência do setor". Na decomposição do "spread", tenta-se atribuir ao componente "margem líquida do banco" erros como a absorção de subsídios cruzados da fatia de crédito direcionada ao setor rural e habitacional e ao que se chamou de assimetrias de informação. Em outro estudo do Banco Central, "Revisitando a Metodologia de Decomposição do "Spread" Bancário no Brasil", tenta-se aprimorar a metodologia de apuração do "spread" para conhecer a parcela que fica com os bancos. No geral, o levantamento amplia o universo de bancos pesquisados e acrescenta no cálculo o impacto dos depósitos compulsórios, que, na metodologia original, é igual a zero. Na nova técnica, a margem líquida dos bancos é reduzida de 38,3% para 23,4%. O fato é que os trabalhos não permitem concluir que os bancos não exercem poder na formação de seus preços. O país do maior "spread" do mundo tem na margem dos bancos um componente que representa algo entre um terço e um quarto de seu total. Segundo o Banco Central, em 2002 a margem dos bancos (38,3%) representava a maior parcela do "spread", seguida dos impostos (27,7%), dos custos administrativos (17,2%) e da inadimplência (16,7%). Além disso, é importante notar que fica embaraçoso afirmar que os bancos não exercem poder de definir seus preços quando se observa a evolução das tarifas cobradas pelos serviços que prestam. Os valores cobrados e a magnitude dos reajustes evidenciam o poder de definição dessas tarifas pelo setor. Praticamente todos os grandes bancos cobrem seus gastos de pessoal apenas com a receita de taxas de serviços. Em 2003, a cobrança de tarifas totalizou R$ 29,3 bilhões e as despesas com pessoal foram de R$ 31,7 bilhões. No primeiro semestre de 2004, os valores foram de R$ 16,4 bilhões e de R$ 16,1 bilhões, respectivamente. Segundo o Procon, de setembro de 2003 a março de 2004, as tarifas bancárias foram reajustadas em 11,7%, ante o INPC de 3,97% no mesmo período. Além disso, um levantamento em 18 bancos revela que as receitas de serviços saltaram de R$ 2,5 bilhões em 1994 para R$ 21 bilhões em 2003 (crescimento de 740%). Isso coloca em xeque o peso dos custos administrativos -de 17,2% a 29,4%- na composição do "spread" apurado pelo Banco Central. Outra questão importante nesse debate da composição do "spread" são as elevadas provisões para cobrir eventual inadimplência. As perdas reais da carteira de empréstimos oscilam entre 4% e 5%, valores compatíveis com a experiência internacional. Em relação ao peso dos depósitos compulsórios, um foco de permanente crítica dos bancos ao governo, cumpre apontar que são parcialmente remunerados pelo Banco Central. Por outro lado, os depósitos em poder dos bancos são constituídos em maior parte de recursos livres que permitem grandes margens de ganho (55% dos depósitos à vista, 85% dos depósitos a prazo e 70% da caderneta de poupança têm custo financeiro zero para os bancos). Ademais, o setor bancário no Brasil é brindado com inúmeros privilégios. O processo de fusão entre instituições não é submetido ao Cade, a dívida mobiliária pública torna o governo refém de seus financiadores, as tarifas cobradas pelos serviços são abusivas e refletem a capacidade de formação de preços do setor e seu poder de mercado permite impor ao mercado "spreads" dez vezes maiores do que os verificados em países no mesmo estágio de desenvolvimento. Vale citar que, no estudo "Do Brazilian Banks Compete?" (Working Paper 03/113), produzido pela economista do FMI Agnés Belaisch, conclui-se que, em razão da estrutura de mercado, o sistema bancário brasileiro atua de modo oligopólico e que o setor não é eficiente. A estrutura do mercado bancário no Brasil é o ponto de partida para combater o absurdo custo do crédito. Há que começar a questionar o enorme poder de mercado dos bancos, segmento em que a palavra crise não existe. Nota: agradeço ao consultor financeiro Michel Etlin pelas estimulantes idéias incorporadas neste artigo.

 

MARCOS CINTRA, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas.

Topo
bottom of page