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  • Marcos Cintra

Coragem e imaginação no SFH

A divulgação, no domingo último pela Folha, das propostas elaboradas pelo grupo de trabalho instituído pelo BNH para estudar o reajuste das prestações da casa própria traz a tona uma das mais graves questões financeiras da atualidade econômica brasileira. Trata-se do perigo de insolvência do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), desastre que envolverá, a valores de hoje, mais de Cr$ 70 trilhões, além de afetar diretamente os depositantes das mais de sessenta milhões de cadernetas de poupança, e a quase totalidade dos assalariados brasileiros titulares das contas do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço.


Segundo a proposta da Abecip, representante dos agentes financeiros, os reajustes deveriam situar-se entre um mínimo de 121% e um máximo de 206%, dependendo do valor do financiamento (acima ou abaixo de novecentas UPC), e da circunstância adquirente já haver, ou não, se beneficiado da opção pelo reajuste de 80% do salário mínimo. A sugestão dos mutuários fixa a correção das prestações em 112%. Em ambos os casos o reajuste das amortizações será efetuado de acordo com índices inferiores à correção dos saldos devedores, gerando consequentemente resíduos que deverão ser cobertos pelo Fundhab/FCVS, fundo criado para absorver tais déficits nos valores amortizados.


Vale lembrar que pela proposta da Abecip as responsabilidades do fundo se elevariam para Cr$ 23 trilhões a preços de abril passado, e que pela dos mutuários iriam para quase Cr$ 71 trilhões. Como atualmente os recursos do fundo andam em cerca de Cr$ 5 trilhões, não há como evitar a conclusão de que o enorme "furo" que surgirá no SFH terá de ser atendido com auxílio de verbas governamentais. Deve ser ressaltado ainda que os eventuais custos de salvamento do SFH não poderão contar com a justificativa de estarem sendo suportados pela sociedade em nome do atendimento da demanda habitacional para as famílias carentes, o objetivo primordial da criação do BNH em 1964.


Pelo contrário, constata-se pela tabela anexa que embora as famílias de até cinco salários mínimos de renda (que compõem 70% do total de famílias) suportem 88,9% do déficit habitacional brasileiro, o SFH orientou para aquelas faixas de interesse social tão-somente 20% dos recursos disponíveis. Para as famílias de até três salários mínimos, que representam 77% do déficit habitacional, a destinação de recursos não ultrapassou 6% do total. Por outro lado, as faixas de 5,3 até 16,5 salários mínimos de renda familiar, cuja participação no déficit habitacional não atinge 12%, foram contempladas com quase 78% do saldo de financiamentos concedidos.


Neste contexto torna-se necessário discutir propostas de reformulação do SFH que transformem-no não somente num poderoso instrumento de ação social, mas que seja financeiramente correto, evitando o surgimento de resíduos contratuais sem cobertura. Tais objetivos poderão ser obtidos mediante profundas e corajosas reformas no modelo operacional do SFH, dentre elas a reavaliação do papel dos agentes financeiros no sistema — transformando-os em bancos hipotecários apoiados pela criação de um mercado compulsório de letras imobiliárias, criando o monopólio governamental da Caderneta de Poupança, e concentrando recursos no BNH para atendimento exclusivo às famílias na faixa de interesse social; e, sobretudo, pela adoção de planos de amortização financeiramente corretos, pelos quais tanto amortizações, quanto saldos devedores, sejam corrigidos concomitantemente, e de acordo com idênticos parâmetros.


Face às distorções introduzidas pela inflação brasileira tais propostas de reformulação do SFH, já explicitadas mais detalhadamente em outras ocasiões, tornarão necessária a concessão de subsídios às famílias carentes. Deve-se notar, contudo, que isto ocorrerá com maior transparência, devendo o BNH concorrer, juntamente com os demais órgãos governamentais, na obtenção de recursos orçamentários para a consecução de seus programas habitacionais. Seriam evitadas as aberrações atualmente observadas, pelas quais os maiores beneficiários dos resíduos contratuais deixados ao governo não são aqueles que mais sofrem as consequências da brutal carência habitacional brasileira.


MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 39, é doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), professor da Fundação Getulio Vargas e consultor econômico da Folha.

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