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  • Marcos Cintra - Gazeta Mercantil

Monumento à arrogância tecnocrática

Jamais acreditei que a reforma tributária pudesse ser feita por este governo. As limitações técnicas das propostas e o engessamento ideológico de seus articuladores seriam barreiras intransponíveis para a aprovação do projeto apresentado pela administração federal. Agora que ele foi emendado, e piorado, na Comissão de Reforma Tributária da Câmara dos Deputados, torço para que ele não seja aprovado mesmo. Mas é bom estarmos preparados, pois a reforma tributária voltará a ser um tema de destaque no País a partir de março próximo.


É difícil identificar pontos positivos neste projeto. No geral, o que é tecnicamente justificável (pouca coisa) é politicamente inviável. E vice-versa. A única certeza é que se aquela reforma tributária for aprovada, o País estará em maus lençóis. O relator, deputado Sandro Mabel, afirmou, em entrevista à Gazeta Mercantil (5/12/2008), que o projeto foi inspirado na proposta Mussa Demes de 1999. Aquele projeto já era ruim, tanto que nem foi apreciado no plenário da Câmara dos Deputados. Mas tinha coerência, ainda que tentasse "aperfeiçoar o obsoleto", como disse Roberto Campos. Foi uma tentativa de centralizar a tributação sobre consumo em um imposto único sobre valor agregado, como fazem os países europeus, e assim sanar o pecado tributário original cometido no Brasil em 1967-8 de conceder competência tributária a entes subnacionais, estados e municípios, para implantarem um imposto sobre valor agregado aos primeiros, e sobre serviços aos segundos. Este modelo descambou, previsivelmente, para a guerra fiscal; para a enorme complexidade burocrática, e principalmente para desastrosos índices de evasão, sonegação, corrupção e iniquidades competitivas e interpessoais.


A reforma que o governo deseja aprovar em 2009 se enredou nas contradições do projeto Mussa Demes, e as aprofundou. Fruto do mais arrogante delirium tremens tecnocrático, o substitutivo Sandro Mabel quis ir muito além, mas sem livrar-se de seus defeitos. Além de centralizar o ICMS, ainda mexeu na Previdência, unificou tributos federais essencialmente distintos, desorganizou e tornou opaco o sistema de partilhas tributárias, confundiu impostos com contribuições, e criou obrigações sem fontes de receitas. E de resto, escangalhou o atual federalismo fiscal, alterou distribuição de receitas, e prometeu que os estados consumidores pobres ganharão, e que os perdedores serão compensados: ou seja, por silogismo, garante que aumentará a carga tributária nacional. Belo projeto!


O País precisa de um sistema tributário objetivo, simples e transparente, com menores custos burocráticos e administrativos para o contribuinte e para o governo, com menos corrupção e que torne a sonegação uma perigosa inutilidade. Há no Congresso duas alternativas que poderiam atender a estas necessidades. Ambas reduziriam a carga individual de impostos dos atuais contribuintes e os custos administrativos empresariais, combateriam a sonegação e simplificariam a estrutura burocrática dos impostos. Ambas fariam os que pagam impostos em excesso pagarem menos, como as empresas formais e os assalariados, e obrigariam os delinquentes, os ilegais e informais a arcarem com a diferença. Esta é a noção de equidade tributária que o País deseja.


Há alternativas disponíveis para tanto: A PEC 474/01 (Imposto Único Federal) cria uma contribuição sobre a movimentação financeira para substituir onze tributos arrecadatórios no âmbito federal; já na pauta da Câmara dos Deputados, e com tramitação legislativa completada; poderia ser votada imediatamente. A PEC 242/08 (Imposto Mínimo) cria uma contribuição sobre a movimentação financeira para substituir o INSS recolhido pelas empresas sobre a folha de pagamentos e para desonerar o trabalho assalariado até um limite de R$ 30 mil mensais. As PECs 474/01 e 242/08 são propostas inovadoras e serviriam como embriões para a implantação de um Imposto Único amplo, que abrangeria todos os tributos arrecadatórios nos três níveis de governo.


Reafirmo minha crença inabalável no bom senso que um dia irá prevalecer na questão tributária brasileira, e que resultará na aprovação do Imposto Único sobre Transações Financeiras. Lancei essa proposta há 19 anos e ela representou um marco no debate sobre reforma tributária. Causou uma ruptura no pensamento tributário nacional e o surgimento de uma corrente de adeptos de um sistema baseado na unificação e radical simplificação de tributos. Seus defensores tiveram que superar inúmeras críticas provenientes dos guardiões da ortodoxia. A experiência da CPMF deitou por terra acusações como a ideia de que o tributo provocaria inflação e desintermediação bancária. Pelo contrário, ela se revelou eficiente, barata e um poderoso mecanismo de combate à sonegação. Ela contrariou padrões conceituais de livros-textos, que possuem valor heurístico no mundo ideal da vida acadêmica, mas pouca validade no mundo selvagem da realidade.


Não obstante, a conveniência de repetir acriticamente as conclusões de compêndios universitários tem levado muitos a afirmar que a tributação sobre a movimentação financeira é ruim por ser cumulativa. Refutar essa tese será o desafio dos defensores do Imposto Único em 2009. Aproveito para informar que terminarei em breve mais um ciclo de reflexões e de pesquisas quantitativas sobre o Imposto Único. A intenção principal será mostrar que a cumulatividade não é o vilão a ser combatido no sistema tributário nacional. Simulações sobre o impacto de diferentes modelos tributários na economia nacional mostrarão que o mito da cumulatividade e de seus malefícios precisa ser repensado com maturidade e espírito crítico. E que urge exorcizar o preconceito contra a tributação sobre movimentação financeira, que Vito Tanzi, um dos maiores tributaristas do mundo, considerou como uma das duas grandes inovações tecnológicas tributárias ocorridas no século passado. Espero que esse novo esforço para romper as unanimidades fáceis e popularescas acerca da questão tributária brasileira beneficie esse debate fundamental para o País, principalmente para nos livrar do projeto que o governo deseja nos fazer deglutir.


 

Publicado na Gazeta Mercantil: 16/01/2009

Publicado na Revista ACB: Fevereiro de 2009

Publicado no Jornal do Brasil: 17/12/2009

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