Aconteceu o que não poderia ter acontecido. E o pior é que tudo poderia ter sido evitado. A abrupta, violenta e descontrolada desvalorização do real aconteceu da pior maneira possível.
Mas há um lado positivo. O tumor foi lancetado. Se o governo despojar-se de sua arrogância e abrir sua mente para a busca de novas soluções, será possível vislumbrar uma luz no fim do túnel.
Não é hora de especular sobre os motivos que levaram o presidente a sustentar a política econômica suicida que foi adotada. Todos reconhecem que tudo começou com a euforia causada pela inacreditável sobrevalorização do real, que perdurou desde meados de 1994.
É verdade que a ilusão do real forte teve resultados imediatos inebriantes. A inflação despencou, o fim do imposto inflacionário significou enorme ganho de renda real para a massa assalariada, a elevação das receitas públicas surpreendeu agradavelmente os políticos, a festança dos importados e das viagens ao exterior seduziu e anestesiou a classe média. É verdade que a economia cresceu por quase três anos (1995-97) e que o governo amealhou impressionante capital político, dando-lhe grandes vitórias eleitorais.
Mas é fato também que a hora da verdade chegou, e a fatura está sendo apresentada.
Os ganhos foram fugazes. Logo em seguida aos delírios da recém-conquistada estabilidade, os juros tornaram-se asfixiantes, o desemprego contaminou todas as classes, todas as profissões, todos os setores, e a dívida pública e das empresas explodiu. Agora o salário mínimo voltou a US$ 70 mensais, o PIB caiu para os US$ 600 milhões de uma década atrás, e o temor da recidiva inflacionária voltou a aterrorizar capital e trabalho. Chegou a hora de pagar a conta.
No momento, o grande desafio é absorver os impactos causados pela desvalorização do real sem permitir que o conflito distributivo resultante implique a geração de uma nova espiral inflacionária. É importante saber que a desvalorização do real somente valerá a pena se três condições forem satisfeitas.
Primeiro, os preços dos produtos comercializados com o exterior deverão subir relativamente aos produtos exclusivamente internos. Isso quer dizer que combustíveis, trigo, equipamentos e matérias-primas importados, café, semimanufaturados de exportação, turismo internacional etc. precisarão ter seus preços em reais aumentados. Quanto maior o conteúdo importado nos produtos brasileiros, maior deverá ser a elevação de seus preços. Da mesma forma, produtos brasileiros exportados também deverão custar mais para o consumidor interno. Se isso não ocorrer, a desvalorização do real terá sido inútil.
Segundo, como consequência, os salários reais precisarão cair, ou seja, a relação salário/câmbio terá de evoluir contrariamente aos assalariados brasileiros. Em outras palavras, os salários internos precisarão comprar menos do que compravam antes. O brasileiro ficará mais pobre.
Terceiro, essa modificação nos preços relativos e os impactos na renda e na riqueza das diversas camadas econômico-sociais terão de ser absorvidos sem resultar em conflitos distributivos entre capital e trabalho, entre setores transacionados internacionalmente e os de uso exclusivamente interno ou entre o governo e o setor privado. Se cada perdedor tentar recuperar suas perdas pela elevação de seus preços ou de sua renda, resultará o revigoramento dos mecanismos de indexação e a volta da espiral inflacionária.
Importante lembrar que um surto de aumento de preços não é inflação. Se os aumentos de preços ocorrerem uma única vez ("once and for all"), o aumento no nível de preços terá apenas um surto e cairá em seguida, sem implicar alta contínua de preços. Nesse caso, a desvalorização do real terá surtido o impacto desejado, ainda que uns percam e outros ganhem com a medida. A desvalorização cambial tenderá a equilibrar o balanço de comércio, os juros poderão cair e o déficit público será sensivelmente reduzido. Nessas condições, a economia poderá voltar a crescer.
Contudo, se os perdedores não aceitarem suas perdas e forçarem o retorno da indexação de preços e salários, estarão dando origem a novo processo inflacionário, que anulará os efeitos da desvalorização do real.
Se as três condições não forem satisfeitas nos meses à frente, tudo terá sido em vão, e estaremos de volta ao passado. Resta saber se as autoridades econômicas saberão manejar seus instrumentos de forma a evitar que o mercado sancione elevações compensatórias de preços.
Há uma luz no fim do túnel. Pode ser um trem em sentido contrário. Mas, se governo, trabalhadores e empresários aceitarem as perdas que couberem a cada um, provavelmente será a saída do sufoco.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA).