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Marcos Cintra

Prioridade social na habitação em risco

Uma das maiores decepções com o governo Sarney foi, sem dúvida, a ineficácia da comissão criada para sugerir a reforma do SFH - Sistema Financeiro da Habitação. Após vários meses de discussões, não foi possível a formulação de uma política habitacional coerente com a magnitude que o problema da moradia apresenta nos grandes centros urbanos brasileiros. Ao invés de resgatar-se a dimensão humana e material dos programas do SFH, as propostas apresentadas redundaram na sujeição dos objetivos sociais às considerações de ordem financeira. Em nome de uma política de financiamento dos gastos públicos, transfere-se ao Banco Central, pelo menos durante os meses de 84 seguintes, 40% dos recursos líquidos captados nas cadernetas de poupança, comprometendo a continuidade dos programas de construção de moradias populares.


A magnitude dos problemas habitacionais exige que o SFH se atenha a atividades nas faixas de interesse social. Ao longo do tempo, contudo, ele atingiu tal vulto e tal multiplicidade de programas que hoje diferencia-se substancialmente dos objetivos originalmente estabelecidos. A análise do organograma do BNH indica que suas metas operacionais multiplicaram-se, atingindo, além da habitação popular, as áreas de saneamento, infraestrutura e planejamento urbano e comunitário, transporte, apoio nas áreas técnicas, financeiras, de estudos e pesquisas, apoio à indústria de construção civil e de materiais, assessoria a Estados e municípios, treinamento, desenvolvimento urbano, infraestrutura de serviços industriais de utilidade pública, fomento ao artesanato, comércio e pequenas indústrias, recuperação urbana e inúmeras outras.


Assim, a habitação deixou de ser a atividade primordial do SFH, que passou a dividir os recursos disponíveis com outras tarefas, principalmente obras de desenvolvimento urbano. Preocupa, também, a constatação de que o modelo operacional do SFH vem perdendo sua característica de interesse social, na medida em que admite que parcela ponderável dos recursos captados e aplicados esteja no âmbito de controle de iniciativas financeiras privadas, pouco atuantes nas faixas de baixa renda. O Estado assume os riscos, garante os recursos, assegura a continuidade do sistema, e a seguir repassa ao capital financeiro privado parte da massa de recursos captados pela poupança forçada (FGTS), além de propiciar as condições para a captação de recursos oriundos da poupança voluntária (depósitos de poupança). Os recursos são captados a custo elevado. Os depósitos do FGTS, das cadernetas de poupança, e da emissão de letras imobiliárias exigem remuneração acima da capacidade da maior parte da população alvo dos programas habitacionais de interesse social.


Assim sendo, são canalizados para aplicações que propiciem níveis de remuneração compatíveis com seus custos, ou seja, são sinalizados para o financiamento de edificações para as camadas de população de renda mais elevada. É sabido que a maior concentração das necessidades de novas unidades habitacionais situa-se nas camadas de baixa renda. As famílias de até cinco salários mínimos de rendimento familiar, que compõem cerca de 70% do total, perfazem 95,9% das necessidades globais, como pode ser visto na tabela 1. Já aquelas de mais de vinte salários absorveriam tão somente 4% do total estimado, embora representem 19,96% do número de famílias. No entanto, as aplicações do SFH não têm sido compatíveis com este perfil da demanda habitacional. Pela tabela 2, nota-se que menos de 6% do saldo de financiamento do SFH foram orientados para o atendimento das famílias de até três salários mínimos, e cerca de 20% para as famílias de até cinco salários mínimos. Por outro lado, as faixas de 5,3 até 16,5 salários mínimos, cuja participação no déficit habitacional não atinge 12%, foram contempladas com quase 78% do saldo de financiamentos.



O Sistema Financeiro de Habitação deveria atentar-se ao provimento de habitação popular, no sentido estrito, ou seja, abrigo ou moradia para as famílias de baixa renda. A oferta de bens de consumo coletivo, como saneamento, infraestrutura social e urbana, desenvolvimento urbano etc., são responsabilidade da administração direta, e não devem fazer parte das atribuições do SFH; muito menos, financiar o déficit público. Caso se confirme as estimativas que durante o mês de janeiro as captações líquidas das cadernetas de poupança atingiram Cr$ 16 trilhões, terão que ser aplicados em títulos públicos quase Cr$ 6,5 trilhões, ou cerca de 70 milhões do ORTN's. Sabendo-se que um lote residencial popular com infraestrutura urbana mínima e com todo o material para a autoconstrução de uma moradia de 40 m² na periferia de São Paulo custaria hoje cerca de 700 ORTN's, os recolhimentos ao Banco Central seriam suficientes para acomodar mais de cem mil pessoas. Seriam moradias simples, precárias mesmo - mas todas estariam erigidas em terrenos próprios, e não em áreas invadidas, como vem ocorrendo com a proliferação das favelas nas cidades brasileiras. Nota-se assim, que o primeiro resultado concreto dos trabalhos de reformulação do SFH foi o esvaziamento de um dos mais importantes programas de ação para a população carente, perdendo o governo Sarney uma boa ocasião para demonstrar que as prioridades sociais são para valer.



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